Luis Dufaur Escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
Para compreender a Idade Média, temos de nos representar uma sociedade que vive de modo totalmente diferente, da qual a noção de trabalho assalariado, e mesmo em parte a de dinheiro, estão ausentes ou são muito secundárias.
O fundamento das relações de homem para homem é a dupla noção de fidelidade, por um lado, e por outro a de proteção.
Assegura-se devoção a qualquer pessoa, e dela espera-se em troca a segurança.
Não se compromete a atividade em função de um trabalho preciso, de uma remuneração fixa, mas a própria pessoa, ou melhor, a sua fé, e em troca se requer subsistência e proteção, em todos os sentidos da palavra.
Tal é a essência do vínculo feudal.
Esta característica da sociedade medieval explica-se, ao considerarmos as circunstâncias que presidiram à sua formação.
A origem encontra-se nessa Europa caótica do século V ao século VIII. O Império Romano desmoronava-se sob o duplo efeito da decomposição interior e da pressão das invasões.
Tudo em Roma dependera da força do poder central. A partir do momento em que esse poder foi ultrapassado, a ruína era inevitável. Nem a cisão em dois impérios nem os esforços de recuperação provisória poderiam travá-la.
Nada de sólido subsiste nesse mundo em que as forças vivas foram pouco a pouco esgotadas por um funcionalismo sufocante, onde o fisco oprime os pequenos proprietários.
Em breve estes não têm outro recurso senão ceder as suas terras ao Estado para pagar os impostos. O povo abandona os campos, e para o trabalho dos campos apela voluntariamente a esses mesmos bárbaros que dificilmente são contidos nas fronteiras.
É assim que na Gália os borguinhões se instalam na região Sabóia-Franco-Condado e se tornam os rendeiros dos proprietários galo-romanos, cujo domicílio partilham.
Sucessivamente, pacificamente ou pela espada, as hordas germânicas ou nórdicas assomam no mundo ocidental.
Roma é tomada e retomada pelos bárbaros, os imperadores são eleitos e destituídos conforme o capricho dos soldados. A Europa não é mais que um vasto campo de batalha, onde se enfrentam as armas, as raças e as religiões.
Como poderá alguém defender-se numa época em que a agitação e a instabilidade são a única lei?
O Estado encontra-se distante e impotente, senão inexistente, cada um move-se por isso naturalmente em direção à única força que permaneceu realmente sólida e próxima: os grandes proprietários fundiários, que podem assegurar a defesa do seu domínio e dos seus rendeiros.
Fracos e pequenos recorrem a eles, confiam-lhes a sua terra e a sua pessoa, com a condição de se verem protegidos contra os excessos fiscais e as incursões estrangeiras.
Por um movimento que se tinha esboçado a partir do Baixo Império, e não tinha parado de se acentuar nos séculos VII e VIII, o poderio dos grandes proprietários aumenta com a fraqueza do poder central.
Cada vez mais se procura a proteção do “senhor” (senior), a única ativa e eficaz, que protegerá não só da guerra e da fome, mas também da ingerência dos funcionários reais.
Assim se multiplicam as cartas de vassalagem, pelas quais a arraia-miúda se liga a um “senhor” para garantir a sua segurança pessoal.
Os reis merovíngios tinham o hábito de se cercar de uma corte de “fiéis” (fideles), homens devotados à sua pessoa, guerreiros ou outros, o que por imitação levará os poderosos da época a agruparem à sua volta os “vassalos” (vassi) que julgaram bom recomendarem-se a eles.
Enfim esses próprios reis, cada vez mais desprovidos de autoridade face aos grandes proprietários, contribuíram muitas vezes para a formação do poder dominial distribuindo terras aos seus funcionários, para retribuir os seus serviços.
Quando os carolíngios chegaram ao poder, a evolução estava quase terminada.
Em toda a extensão do território, senhores mais ou menos poderosos, agrupando à sua volta os seus homens, os seus fiéis, administravam os feudos mais ou menos extensos.
Sob a pressão dos acontecimentos, o poder central tinha dado lugar ao poder local, que tinha absorvido pacificamente a pequena propriedade, e afinal de contas permanecia a única força organizada.
A hierarquia medieval, resultado dos fatos econômicos e sociais, tinha-se formado a partir de si própria; e os seus usos, nascidos sob a pressão das circunstâncias, manter-se-iam pela tradição. Não tentaram lutar contra o estado dos acontecimentos.
A dinastia de Pepino tinha chegado ao poder porque os seus representantes se contavam entre os mais fortes proprietários da época.
Contentaram-se em canalizar as forças das quais faziam parte, e em aceitar a hierarquia feudal tirando dela o partido que podiam tirar.
Tal é a origem do estado social da Idade Média, cujas características são completamente diferentes das que se conheceram até então.
A autoridade, em lugar de estar concentrada num só ponto (indivíduo ou organismo), encontra-se repartida pelo conjunto do território.
A grande sabedoria dos carolíngios foi de não tentarem ter nas mãos toda a máquina administrativa, mantendo a organização empírica que tinham encontrado.
A sua autoridade imediata se estendia apenas a um pequeno número de personagens, que possuíam elas próprias autoridade sobre outros, e assim sucessivamente até às camadas sociais mais humildes.
De degrau em degrau, uma ordem do poder central podia assim transmitir-se ao conjunto do país, e aquilo que não controlavam diretamente podia ser atingido indiretamente.
Em lugar de combatê-la, Carlos Magno contentou-se em disciplinar a hierarquia que deveria impregnar tão fortemente os hábitos franceses.
Reconhecendo a legitimidade do duplo juramento que todo homem livre devia a si próprio e ao seu senhor, ele consagrou a existência do vínculo feudal.
Tal é a origem da sociedade medieval, e também a da nobreza fundiária, não a militar, ao contrário do que se julgou demasiadas vezes.
Desta formação empírica, modelada pelos fatos, pelas necessidades sociais e econômicas, (Citemos a excelente fórmula de Henri Pourrat: “O sistema feudal foi a organização viva imposta pela terra aos homens da terra” (L’homme à la bêche. Histoire du paysan, p. 83) decorre uma extrema diversidade na condição das pessoas e dos bens.
A diversidade provinha do fato que a natureza dos compromissos que uniam o proprietário ao seu rendeiro variava segundo as circunstâncias, a natureza do solo e o modo de vida dos habitantes.
Toda sorte de fatores entram em jogo, os quais tornam diferentes as relações e a hierarquia de uma província para outra, ou mesmo de um domínio para outro.
Mas o que permanece estável é a obrigação recíproca: fidelidade por um lado, proteção pelo outro. Por outras palavras, o vínculo feudal.
(Autor: Regine Pernoud, “Luz da Idade Média”. Ed. original: “Lumière du Moyen Âge”, Grasset, Paris, 1944)