Ora et labora ("reza e trabalha") é o leitmotiv beneditino |
Luis Dufaur Escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
Continuação do post anterior: Dos licores aos Hospitais: os frutos incontáveis da obra de São Bento
É curioso que o projeto beneditino se mostra especialmente criativo no domínio do quotidiano, do corpo, dos sentidos, da cultura material e profana, com as quais se propõe precisamente romper.
Mais: nos séculos XI e XII os mosteiros beneditinos de homens e de mulheres foram mesmo criadores de valores profanos tipicamente europeus e ocidentais, que depois a sociedade fez seus.
Os monges e o corpo
O aspecto mais importante: a alimentação. Numa abadia, isso pode ser complicado, mesmo triplamente complicado: porque é preciso preparar diariamente comida para um grande grupo, pela imposição estrita da proibição de carne de quadrúpedes e pelos frequentes jejuns.
A comunidade tem que resolver muitos e difíceis problemas:
– a produção de matérias primas em autarquia;
– a preparação e a transformação dessas matérias primas em alimentos comestíveis;
– a conservação e a armazenagem em stock dos produtos.
Repare-se nisto: é preciso dispor em permanência, e em grande quantidade, de substitutos para a alimentação à base de carne; é preciso investir nas frutas, nos legumes, nos derivados de leite, na criação de capoeira e na piscicultura.
Monges na colheita de trigo |
Entremos nas cozinhas e observemos as experiências de organização do espaço, os fornos, as chaminés, os esgotos, por vezes conduzindo a resultados extraordinários: Alcobaça, é claro, mas também Fontevrault, Glastonbury, Villers-la-Ville. Mas podíamos falar também na organização do trabalho, nos utensílios...
Centremo-nos na preparação e transformação dos alimentos.
Celeiro de Cluny: tão grande que hoje abriga um museu no 40% dele que ficou! |
A proibição da carne e os jejuns estimulam a criatividade, as experiências dietéticas e culinárias, a exploração das virtualidades de outros produtos alimentares diferentes da carne vermelha.
É preciso armazenar grandes stocks e conservá-los em bom estado, para ter sempre disponível uma reserva alimentar para um grupo numeroso.
Não é só um problema para o cozinheiro, é também para o celeiro, que cuidará dos edifícios e das condições de armazenagem, da gestão de stocks, do tratamento de excedentes.
Muitos celeiros cistercienses ficaram famosos (Pontigny, Longpont, Royaumont, Noirlac, Clermont, Villers).
O celeiro de Claraval, do fim do século XII, tinha 75 m de comprimento; o de Vauclair, do século XIII, 70x15m, o que dá 1050 m2; o de Eberbach, construído pelo ano de 1200, media 93x16 m (=1488 m2). Seria interessante saber como é que eles eram aproveitados interiormente.
Lembremo-nos, além disso, das granjas monumentais, ou da famosa fábrica de cerveja de Villers-la-Ville (1270-1276), com as dimensões de 42X12 m (=504 m2).
(Autor: (excertos de) Luís Miguel Duarte, Professor Catedrático de História Medieval na Faculdade de Letras da Universidade do Porto)
Continua no próximo post: Requintes temporais frutos abençoados dos monges que renunciaram ao mundo