Devoção de um monge cluniacense a Nossa Senhora. Segundo alguns seria o próprio Santo Odon. Bibliothèque National de France, MSS. ms.latin 17716, fol 23 |
Luis Dufaur Escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
continuação do post anterior: Elogio de São Gregório VII aos religiosos de Cluny – 2
Antes de prosseguirmos no estudo das causas do grande sucesso de Cluny, convém recordarmos rapidamente o histórico de sua fundação.
A legislação monástica promulgada para todo o Império por Carlos Magno e Luís o Piedoso exigia que todos os mosteiros adotassem a regra de São Bento. Assim sendo, a partir do século IX houve só mosteiros beneditinos no Ocidente.
Mas, de acordo com a regra de São Bento, esses mosteiros eram autônomos, sem nenhuma vinculação jurídica entre si.
Não houve propriamente uma Ordem religiosa. Percebendo os perigos dessa extrema descentralização, São Bento de Aniane, o conselheiro monástico de Carlos Magno e de Luís o Piedoso, tentou dar uma direção única às abadias do Império, mas sua obra não sobreviveu à sua morte.
Ora, as lutas entre os descendentes de Carlos Magno, tendo enfraquecido o Império, permitiram que novas invasões bárbaras – normandos, eslavos, etc. – penetrassem a fundo no Ocidente.
Essas invasões levaram a desordem e a destruição por onde passaram, e todas as grandes instituições carolíngias sofreram as consequências disso.
De todas elas, foi talvez o monaquismo a mais atingida. Os mosteiros, desamparados, foram pilhados, outros viram se obrigados a permitir, em troca de uma proteção, a ingerência desmedida dos senhores temporais em seus assuntos internos, e todos caíram num relaxamento que conduziu à inobservância da Regra e à consequente dissolução dos costumes.
No início do século X esboçou-se uma reação contra esse estado de coisas. Alguns monges santos, como São Geraldo de Brogne na Lorena, tentaram reerguer suas abadias, levando as novamente à fiel observância da Regra.
E para que mais amplamente se estendesse a sua ação, costumavam reunir sob um abaciato único os mosteiros que, desejando reformar se, se entregavam à sua direção.
O Bem-aventurado Bernon foi um desses monges precursores da grande reforma monástica. Sobrinho do Rei da França, Luís o Gago, ele entrara no mosteiro de São Martinho de Autun.
Depois de ali permanecer por algum tempo, percebeu que, por maiores que fossem os esforços de seu abade para a reforma, eles se perdiam devido à intromissão de outras autoridades na vida interna do mosteiro.
Bernon resolveu então fundar um mosteiro numa das propriedades de sua família. Foi assim que nasceu o mosteiro de Gigny.
Guillerme I o Piedoso faz a doação das terras de Cluny. |
Nessa época, Santo Odon, que seria o primeiro dos quatro grandes abades santos de Cluny, era um jovem conselheiro que servia na corte do Conde Foulques de Anjou, vassalo do Duque de Aquitânia, Guilherme o Piedoso. Era filho único de uma nobre e rica família do Maine.
Seu pai, Abon, o tinha doado a São Martinho de Tours logo após seu nascimento, mas o fizera às escondidas de sua mulher e de sua família, nada contando a ninguém.
Vendo o menino crescer muito bem dotado, arrependeu se da doação que fizera. Mantendo o segredo, encaminhou o para o serviço do Conde de Anjou.
Santo Odon distinguiu se nessa corte e prometia ser um grande cavaleiro. Percebeu, no entanto, que não era essa a vida que Deus desejava que ele levasse. Recorreu a Nossa Senhora, pedindo que o esclarecesse e fizesse ver quais eram os desígnios de Deus sobre ele.
Foi logo acometido por uma violenta dor de cabeça, que o impedia de se desincumbir direito de suas obrigações. Durante três anos essa dor de cabeça não o abandonou.
A princípio tentou continuar na corte, cumprindo rigorosamente os seus deveres, mas logo teve de reconhecer que não poderia ali se manter.
Voltou para a casa paterna, onde Abon usou de todos os recursos possíveis para curá lo. Tudo foi inútil.
O pai teve de se render à evidência: São Martinho de Tours cobrava a doação que ele fizera. Abon contou tudo a Odon.
“Não tinha outra saída — dizia o Santo quando contava a sua vida aos Monges — senão refugiar me junto de São Martinho, receber a tonsura, e de bom grado votar me ao seu serviço, pois a ele fora doado sem o meu consentimento”.
Santo Odon aos pés de Nossa Senhora, detalhe da iluminura acima. |
Durante a sua permanência entre os cônegos, leu a Regra de São Bento e ficou encantado com a vida monástica, mas não via em nenhum mosteiro que conhecia a observância dessa Regra que tanto o atraía.
Por outro lado, os cônegos de São Martinho de Tours viviam também em desordem, e não suportavam a presença de Odon, pois a vida virtuosa que este levava os incomodava.
O Santo retirou se para uma casa próxima da igreja, e ali dividia o seu tempo entre o cumprimento de suas obrigações de cônego e a vida de eremita.
Um de seus amigos na corte do Conde de Anjou desejava entrar no estado religioso, e foi procurá-lo em Tours. Depois de viverem juntos durante algum tempo, saíram os dois em peregrinação, procurando um mosteiro verdadeiramente observante da Regra.
Viajaram muito tempo e não o encontraram. Santo Odon voltou para Tours, e seu companheiro Santo Adgrim dirigiu se a Roma, a fim de pedir aos Apóstolos São Pedro e São Paulo as luzes necessárias para seguir a sua vocação.
A caminho de Roma, passou pela abadia de Baume, e não pôde conter a sua surpresa encontrando um mosteiro observante. Avisou Santo Odon, que lhe foi ao encontro, e ambos pediram ao Bem aventurado Bernon que os recebesse entre os seus monges.
Foram logo aceitos, e iniciaram em Baume a vida monástica que tanto desejavam. Santo Adgrim não chegou a fazer a profissão monástica.
Retirou se para uma caverna próxima do mosteiro e foi eremita até o fim de sua vida, morando sempre em lugares próximos dos mosteiros onde estava Santo Odon.
Este permaneceu algum tempo em Baume e depois em Gigny, apesar de violenta oposição que lhe movia o Monge Guy, sobrinho do Bem aventurado Bernon.
O Duque Guilherme da Aquitânia teve conhecimento da vida regular que havia em Baume e em Gigny.
Havia muito tempo ele desejava fundar um mosteiro em suas terras, para reparar um crime que cometera na mocidade. Mandou chamar Bernon. Ambos se encontraram num local conhecido por Cluny, onde Guilherme treinava os seus cães de caça.
Depois de expor os seus projetos, o Duque perguntou ao Abade se aceitava fundar esse mosteiro. Diante da resposta afirmativa, pediu lhe que escolhesse, ele mesmo, as terras que desejava em seus imensos domínios.
— Escolho estas — respondeu o Abade.
— Mas estas não posso dar, pois nelas tenho o melhor tempo de treinamento de meus cães de caça.
— Senhor Duque, bem sabeis que as preces dos monges vos servirão mais, diante de Deus, do que os latidos dos cães. Expulsai os cães e recebei os monges.
E o Duque nada teve para responder.
Em 910, na cidade de Bourges, Guilherme o Piedoso entregou solenemente ao Bem aventurado Bernon as terras de Cluny, na presença da Duquesa e de toda sua família.
Santo Odon, abade de Cluny. |
Num documento assinado por todos os presentes, o Duque da Aquitânia isentou Cluny de qualquer ingerência sua, dando aos Apóstolos São Pedro e São Paulo as terras e o mosteiro que ali se construiria, e cobrindo de anátemas todos aqueles que, seus parentes ou não, no presente ou no futuro tentassem delas se apoderar ou interviessem, sob qualquer pretexto, na vida interna do mosteiro.
O Papa, como Sucessor dos Apóstolos, deveria zelar pelo mosteiro, a ele incumbindo a defesa desse patrimônio entregue à guarda do Bem aventurado Bernon e da Santa Sé.
O próprio Duque da Aquitânia foi a Roma para obter a ratificação do documento e pagar as primeiras doze peças de ouro para manutenção da luminária da Igreja dos Apóstolos, como Cluny deveria fazer todos os anos, de acordo com o direito feudal.
Santo Odon foi para Cluny com outros monges de Baume e Gigny. Ao que parece, o que levou o Bem aventurado Bernon a enviá-lo para o novo mosteiro foi a hostilidade de Guy.
Ao morrer, em 926, Bernon deixou a este último, por testamento, alguns dos mosteiros que dirigia, entre eles Baume e Gigny, e outros a Santo Odon, entre os quais Cluny. Como Cluny era o mais pobre dos mosteiros e estava ainda em construção, o Bem aventurado Bernon tirou de Gigny o domínio de Alafracta e o entregou a Santo Odon, para com ele manter Cluny.
Guy impugnou a doação, e à força se apoderou de Alafracta. Santo Odon recorreu à Santa Sé e o Papa lhe deu ganho de causa enquanto os monges de Gigny vivessem no mosteiro de Cluny.
Santo Odon pôde então entregar se livremente à formação de seus monges e empreender a reforma monástica que estes realizariam com tanto brilho na França, na Itália e até na Espanha.
Os cluniacenses o consideravam o seu verdadeiro fundador, e foi realmente ele que introduziu no mosteiro esse espírito, essa alma que modelou a Idade Média.
(Autor: Prof. Fernando Furquim de Almeida, “Catolicismo”)