Capitel da antiga Ecclesia Maior de Cluny |
Luis Dufaur Escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
continuação do post anterior: Abades santos governam Cluny quase 200 anos
Procurando sistematizar um pouco a imensa riqueza de aspectos pelos quais podemos abordar o estudo dos princípios que guiaram os cluniacenses em sua obra gigantesca, escolhemos para nos servir de referência o zelo pela tradição, que esses monges deixaram impresso indelevelmente em tudo que realizaram.
Na escolha dos meios para atingirem os fins que desejavam, era a tradição o farol que os guiava. Estudavam o passado com os olhos voltados para o futuro, para construírem o presente, a fim de que este fosse o mais forte elo entre aquelas duas épocas e imprimisse à humanidade de seu tempo o maior progresso possível.
Este zelo pela tradição é incontestável. Ninguém o põe em dúvida. Poderíamos escolher qualquer atividade humana para mostrar como a tradição presidiu às obras que realizaram esses discípulos de São Bento. Escolhemos a arquitetura.
Já no século passado, Eugène Emmanuel Viollet le Duc, estudando a arquitetura dos mosteiros de Cluny, mostrou a existência de uma arquitetura própria cluniacense, que levou à perfeição o estilo românico.
Sua tese foi duramente criticada e até mesmo ridicularizada por alguns. Neste século, a “Medieval Academy of America” enviou a Cluny uma missão arqueológica para estudar as construções da célebre Abadia.
Seus trabalhos continuam ainda hoje, e, graças sobretudo a Kenneth John Conant, que os lidera, conseguiu levantar dos escombros que restam a reconstituição arqueológica de todos os edifícios lá construídos pelos cluniacenses.
Viollet le Duc foi reabilitado pela missão norte-americana. Dele diz Conant que
“foi o primeiro nos tempos modernos a ter a intuição do que tinha sido Cluny. Distinguindo se entre os mais qualificados arquitetos que conheceram o fundo e a técnica da arquitetura da Idade Média na França, estava bem preparado para compreender os cluniacenses, cujo espírito falava nos seus monumentos com uma eloqüência particular” (K. J. Conant, “Cluny – Les Églises et la Maison du Chef d’Ordre”, Mâcon, 1968).
Mais adiante, depois de mostrar a tradição sempre presente nas construções cluniacenses, volta a tratar do assunto:
“Vê-se, além disso, o que havia de arbitrário nos contraditores de Viollet-le-Duc, que não compreenderam em que sentido houve, realmente, uma escola cluniacense. Como a igreja abacial de Cluny foi a obra-prima do estilo cluniacense, a mais bela, a mais rica e, na época, a maior do mundo (com poucos metros a menos, como dissemos, do que a atual Basílica de São Pedro do Vaticano), vamos ainda citar uma breve descrição desse templo, que deixa bem patente como os cluniacenses marcavam de tradição suas construções:
“O próprio edifício, por seu estilo, por seus elementos, relembrava perfeitamente a extensão imperial da Congregação de Cluny. Um monge vindo de qualquer lugar encontrava ali alguma coisa que lhe recordava a arte da região de onde viera. Cluny agregava mosteiros de toda parte e colhia também em toda parte elementos para a sua arte.“Algumas notas farão compreender a natureza dessa síntese sutil. O plano em cruz arquiepiscopal exprimia um edifício que era uma combinação muito hábil do plano central da basílica romana de duplo transepto com o plano basilical ordinário.
Rosácea da igreja principal de Cluny, segundo reconstituição digital
“A ele se acrescentava um deambulatório com capelas formando raios. O aspecto interior, se bem que fosse uma das mais altas naves abobadadas até então construídas, fazia prevalecer a longa linha horizontal amada pelos meridionais, enquanto que as torres levantadas sobre os transeptos forneciam as massas para a interpretação e as linhas montantes tão caras aos bizantinos e aos setentrionais.
“A decoração era feita com pinturas de inspiração bizantina e esculturas – centenas de capitéis esculturados, um pórtico notável – que são os marcos da reconquista da arte de fazer esculturas em pedra.
“ Numerosos capitéis relembram muito o coríntio antigo, mas muitos deles tinham o estilo novo que a arquitetura soubera dar a todo o edifício.
“A arte que produziu esse edifício era visivelmente uma arte especial e de elite. Só uma tal congregação e um tal abade [São Hugo] poderiam executar um tal projeto. Temos o direito, creio, de qualificar de escola cluniacense a obra dessa plêiade de Cluny.
“Esse maravilhoso florão não é, na verdade, arquitetura românica da Borgonha. De um lado ultrapassa as fronteiras da Borgonha; de outro, tirando se Cluny da Borgonha, fica uma arquitetura regional, borguinhona.
“A arquitetura de Cluny é uma soma da arquitetura românica e de suas fontes de inspiração, obra especial feita em Cluny, pelo instituto beneditino de Cluny, sob a presidência de um abade de Cluny e por monges de Cluny.
“Concebida em 1088 e terminada em 1109, Cluny tem o direito de ocupar o primeiro lugar como a maior obra desse grande período, com um edifício ricamente dotado pelo passado, em progresso sobre o seu tempo e antecipando ousadamente o futuro (“Dictionnaire d’Histoire et de Géographie Ecclésiastique”, verbete Bénédictin – Ordre, por Ph. Schmitz, cols. 1161 a 1162 do vol. VII).
Ábside da igreja principal de Cluny, segundo reconstituição digital |
O historiador Guy de Valous vai mais além:
“Em Cluny a vida espiritual tem necessidade da beleza para desabrochar; é um dos traços dominantes da tradição cluniacense, tanto na arte espiritual como nas artes plásticas, na formação das almas como na do mosteiro.
“Os monges não eram estetas, eram artistas peritos em ir ao encontro de Deus por caminhos de suma beleza, e precisamos nos lembrar de que eles não separavam o bom do belo” (Guy de Valous, “Le Monachisme Clunisien des Origines au Xve. Siècle”, vol. 1, Introduction, p. IV).
Ao encerrarmos este artigo, não podemos deixar de transcrever as palavras finais do citado livro de K. J. Conant. Ele foi publicado em 1968 pela “Medieval Academy of America”, em francês e inglês. Contém tudo o que se conhece até hoje sobre a Igreja e a Abadia de Cluny.
Como se sabe, o vandalismo da Revolução Francesa iniciou a destruição sistemática da Abadia. No tempo de Napoleão, a Igreja de São Pedro, a maravilha da arquitetura de Cluny, foi dinamitada. A Restauração não impediu que a destruição prosseguisse.
Até 1823 o arrasamento continuou, deixando intactas apenas algumas pedras. Foi a partir delas que a reconstrução arqueológica pôde ser feita. Depois de expor os resultados obtidos, Conant termina com as seguintes palavras:
“Mas se a beleza pode perecer, sua lembrança sobrevive.
“Na medida em que nos foi possível, trouxemos a uma nova vida a Cluny de outrora. Não teríamos estado à altura da tarefa se, no decurso de nosso trabalho, a beleza material e espiritual que deu forma a essas pedras não tivesse voltado algumas vezes de seu exílio, para nos unir intimamente ao espírito cluniacense” (Op. cit., p. 134).
(Autor: Prof. Fernando Furquim de Almeida, “Catolicismo”)