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Em Cluny, história como alimento para as almas

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Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs



continuação do post anterior: Zelo pela tradição na arquitetura de Cluny



Nas pesquisas arqueológicas que estão sendo feitas em Cluny, um dos critérios básicos que orientam os estudiosos da grande Abadia é o respeito à tradição que os cluniacenses sempre observaram em suas obras.

O empenho que tinham esses monges em serem os continuadores de seus maiores simplifica muitas vezes o trabalho dos pesquisadores.

Quando as ruínas em que trabalham não lhes fornecem elementos suficientes para uma reconstituição, recorrem eles ao passado, procurando uma abadia ou igreja de anteriores épocas que tenha sido conservada até hoje, para conseguirem, por comparação, completar os dados que puderam coligir nos restos do monumento que estão reconstituindo.

Em tudo, os cluniacenses tinham como guia a tradição. Eles eram eminentemente conservadores no verdadeiro sentido da palavra — isto é, estudavam, conservavam e desenvolviam o que o passado realizara de bom, belo e verdadeiro, sem prejuízo de inovações prudentes e fecundas — para que a humanidade não se desviasse do reto caminho em seu progresso para a eternidade.

Esse cuidado com a tradição exigia deles um bom conhecimento da História, estudada à luz da doutrina católica, para poderem discernir nos acontecimentos passados a mão de Deus, que conduz a humanidade, da obra dos homens que tentam opor se à Providência Divina.

Esse estudo, assim feito, não só lhes permitia construir o presente com segurança, como alimentava a própria vida espiritual dos monges.

E, de fato, vê se em listas de volumes retirados da biblioteca de Cluny, para a hora destinada pela Regra à leitura espiritual, vários livros históricos, tanto consideravam os cluniacenses a História como um alimento da vida de suas almas.

Por outro lado, eles deviam também deixar registrados os acontecimentos que se passavam sob seus olhos. Daí o cuidado que tiveram os abades, desde Santo Odon, com os arquivos da Abadia.

Mais eloquente ainda é a deliberação de Santo Odilon, mandando Raoul Glabre escrever a crônica de seu tempo, para que a posteridade conhecesse a “gesta Dei” no mundo durante a época em que viviam.

Devemos ter sempre presente esse respeito pela tradição, se quisermos conhecer bem o pensamento que presidia à formação dos monges de Cluny.

Tanto mais que ele é sempre o mesmo, sem solução de continuidade, por parte dos abades e de todos os religiosos durante os chamados tempos heroicos da Abadia, que podemos limitar aos anos do governo de Santo Odon, São Maïeul, Santo Odilon e São Hugo.

Não quer isso dizer que esse pensamento tenha ficado imóvel durante todo esse período.

Pelo contrário, ele foi sendo explicitado sempre mais, pelas sucessivas gerações de monges que não só o desenvolveram, como o aplicaram na vida que levavam no mosteiro e fora dele.

E como esses quatro abades são os arquétipos da vida monástica que instituíram, é analisando seu pensamento que poderemos melhor conhecer o pensamento de Cluny.

Homens extraordinários, com qualidades humanas excepcionais e sobrenaturalizados pela “metanóia” exigida pelo voto de reforma dos costumes, que a Regra de São Bento lhes pedia ao entrarem no mosteiro, souberam eles pô las ao serviço do ideal cluniacense que conceberam.

Cada um deles deu a sua contribuição para a formação desse pensamento comum destinado a construir, ao longo de duzentos anos, essa Cluny primitiva, a verdadeira Cluny, tão admirada por quem quer que conheça a sua história.

Infelizmente, os escritos que se conhecem desses quatro santos abades são raros, o que dificulta muito o trabalho dos historiadores. Aliás, a pobreza de documentos de que se ressente a História medieval é notória, e muito explicável.

Além de serem deficientes os meios materiais de que dispunham os medievais para deixarem obras escritas para a posteridade, a Revolução encarregou se de destruir boa parte do que poderia ter chegado até nós.

A difusão de seus erros só seria possível com a sistemática destruição de tudo que revelasse a grandeza dessa era gloriosa que foi a Idade Média. Cluny, particularmente, sofreu muito com as pilhagens, devastações, incêndios de igrejas e mosteiros, com que o ódio revolucionário perseguiu sua memória.

Existem, entretanto, algumas obras de Santo Odon, e outras, em menor número, de Santo Odilon e São Hugo. Curiosamente, não chegou até nós nada escrito por São Maïeul. Entretanto, os historiadores souberam aproveitar esse material existente e dar dele uma boa visão de conjunto, o que nos permitirá tentar um estudo do pensamento cluniacense.

O verdadeiro fundador de Cluny, o abade que deu o espírito à Abadia, foi Santo Odon. Antes de se empenhar nessa obra, ele meditou profundamente sobre a formação a dar a seus monges, sobre a História do mundo e sobre o estado em que este se encontrava na sua época.

Era uma época de trevas, da mais completa decadência. Desmoronara o Império católico de Carlos Magno, ruíam as instituições, e a corrupção de costumes invadira todas as camadas da sociedade, atingindo até a vida religiosa e a própria Santa Sé.

São Pedro, a quem estava consagrada a grande igreja abacial de Cluny, a maior da Idade Média
São Pedro, a quem estava consagrada a grande igreja abacial de Cluny,
a maior da Idade Média
Ora, Santo Odon queria que os seus monges fossem o sal da terra, que regeneraria os homens, as instituições e toda a sociedade, tirando a do caos em que se encontrava. Meditou com todo o cuidado as causas dessa decadência e escolheu os remédios necessários e suficientes para renovar o mundo.

As conclusões a que chegou, ele as expôs numa obra, a “Occupatio”, escrita em versos, que é fundamental para compreendermos o pensamento de Cluny. Infelizmente, não conhecemos seu texto (do qual A. Svoboda publicou uma edição crítica em 1900), mas tantos são os trabalhos publicados sobre ela, que as suas linhas fundamentais estão bem definidas para nós.

Santo Odon identificava sua época como o limiar dos últimos tempos.

E a “Occupatio”é estudo teológico da História desde a criação e a queda dos anjos até esse limiar dos últimos tempos, o que lhe permitiu conceber como deveria ser o monge cluniacense para combater eficazmente os males da humanidade nos tempos em que vivia, e para construir esses últimos tempos que viriam.

A importância desse estudo é enorme. Suas conclusões não valem só para os monges que o autor desejava formar.

Pelo menos em suas linhas gerais, são válidas para qualquer homem. Dom Kassius Hallinger observa com muita razão que Santo Odon ensina o leitor a “evitar os caminhos extraordinários de sua própria fantasia e, ainda mais, a encontrar a segurança no identificar-se com os acontecimentos históricos concretos” (K. Hallinger, “The Spiritual Life of Cluny”, editado por Noreen Hunt em seu“Cluniac Monasticism in the Central Middle Age”, p. 33).

É essa obra fundamental que nos servirá de ponto de partida para o estudo que pretendemos fazer.


(Autor: Prof. Fernando Furquim de Almeida, “Catolicismo”) 

FIM




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