Parada histórica na Bélgica. A continuidade familiar razão de ser da transmissão natural dos bens sem intervenção da lei ou outro fator. |
Luis Dufaur Escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
O que é notável no sistema medieval de transmissão de bens é que passam para um único herdeiro, sendo este designado pelo sangue.
“Não existe herdeiro por testamento”, diz-se em direito consuetudinário.
Na transmissão do patrimônio de família, a vontade do testamenteiro não intervém.
Pela morte de um pai de família, o seu sucessor natural entra de pleno direito em posse do patrimônio.
“O morto agarra o vivo”, dizia-se ainda nessa linguagem medieval, que tinha o segredo das expressões surpreendentes.
É a morte do ascendente que confere ao sucessor o título de posse, e o coloca de fato na posse da terra.
O homem de lei não tem de intervir nisso, como nos nossos dias.
Embora os costumes variem de acordo com as províncias e conforme o lugar, fazendo do mais velho ou do mais novo o herdeiro natural, e embora varie a maneira como sobrinhos e sobrinhas possam pretender à sucessão na falta de herdeiros diretos, pelo menos uma regra é constante: só se recebe uma herança em virtude dos laços naturais que unem uma pessoa a um defunto.
O aniversário do avô. Ferdinand Georg Waldmüller (1793 - 1865). Coleção particular. |
Quando o herdeiro natural é notoriamente indigno do seu cargo, ou se é pobre de espírito, por exemplo, são admitidas alterações, mas em geral a vontade humana não intervém contra a ordem natural das coisas.
“Instituição de herdeiro não tem lugar”, tal é o adágio dos juristas de direito consuetudinário. É neste sentido que ainda hoje se diz, falando das sucessões reais: “O rei morreu, viva o rei”.
Não há interrupção nem vazio possível, uma vez que só a hereditariedade designa o sucessor. Por isso a gestão dos bens de família se acha continuamente assegurada.
A família von Kurneberg. Codex Manesse, Große Heidelberger Liederhandschrift, Zürich, |
Por isso havia sempre um único herdeiro, pelo menos para os feudos nobres.
Temia-se a fragmentação que empobrece a terra, dividindo-a ao infinito.
O parcelamento foi sempre fonte de discussões e de processos, além de prejudicar o cultivador e dificultar o progresso material, pois é necessário um empreendimento de certa importância para poder aproveitar os melhoramentos que a ciência ou o trabalho põem ao alcance do camponês, ou para poder suportar eventuais fracassos parciais, e em qualquer caso fornecer recursos variados.
O grande domínio, tal como existe no regime feudal, permite uma sábia exploração da terra.
Pode-se deixar periodicamente uma parte em repouso, dando-lhe tempo para se renovar, e também variar as culturas, mantendo de cada uma delas uma harmoniosa proporção.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)