Luis Dufaur Escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
Julgou-se durante muito tempo que bastava, para explicar a sociedade medieval, recorrer à clássica divisão em três ordens: clero, nobreza e terceiro estado.
É a noção que dão ainda os manuais de História: três categorias de indivíduos, bem definidas, tendo cada uma as suas atribuições próprias e nitidamente separadas umas das outras. Nada está mais afastado da realidade histórica.
A divisão em três classes pode aplicar-se ao Antigo Regime, aos séculos XVII e XVIII, onde efetivamente as diferentes camadas da sociedade formaram ordens distintas, cujas prerrogativas e relações dão conta do mecanismo da vida.
No que concerne à Idade Média, tal divisão é superficial. Explica o agrupamento, a repartição e distribuição das forças, mas nada revela sobre a sua origem, sua jurisdição, a estrutura profunda da sociedade.
Tal como aparece nos textos jurídicos, literários e outros, esta divisão corresponde a uma hierarquia, comportando uma ordem determinada, mas uma ordem diferente do que se pensou, e desde já muito mais variada.
Nos atos notariais, vê-se correntemente o senhor de um condado, o cura de uma paróquia aparecerem como testemunhas em transações entre vilãos, e a mesnie (mesnada é o termo correspondente entre nós, mas de sentido diferente, englobando um companheirismo guerreiro) de um barão — quer dizer, o seu meio, os seus familiares — comporta tanto servos e frades como altas personagens.
As atribuições destas classes estão também estreitamente entrelaçadas.
A maior parte dos bispos são igualmente senhores, e muitos deles se originam do povo miúdo.
Um burguês que compra uma terra nobre torna-se também nobre em certas regiões. Logo que abandonamos os manuais para mergulhar nos textos, esta noção das “três classes da sociedade” se mostra fictícia e sumária.
Mais próxima da verdade, a divisão em privilegiados e não privilegiados se mostra também incompleta, porque houve na Idade Média privilegiados da mais alta à mais baixa escala social.
O menor aprendiz é um privilegiado em determinados níveis, pois participa dos privilégios do corpo de ofício; as isenções da universidade beneficiam os estudantes, e mesmo os seus criados, tanto como os mestres e os doutores.
Alguns grupos de servos rurais gozam de privilégios precisos, que o seu senhor é obrigado a respeitar.
Considerar como privilégios apenas os da nobreza e do clero, é uma noção completamente errônea da ordem social.
(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)