Luis Dufaur Escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
Não poderíamos apreender melhor a importância desta base familiar do que, por exemplo, comparando a sociedade medieval, composta de famílias, com a sociedade antiga, composta de indivíduos.
Na Antiguidade
Nesta, o varão detém a primazia em tudo: na vida pública ele é o civis, o cidadão que vota, que faz as leis e toma parte nos negócios de Estado; na vida privada, é o pater familias, o proprietário de um bem que lhe pertence pessoalmente, do qual é o único responsável, e sobre o qual as suas atribuições são quase ilimitadas.
Em parte alguma se vê a sua família ou a sua linhagem participando na sua atividade.
A mulher e os filhos estão inteiramente submetidos a ele, em relação a quem permanecem em estado de menoridade perpétua.
Sobre eles, como sobre os escravos ou sobre as propriedades, tem o jus utendi et abutendi, o poder de usar e consumir.
A família parece existir apenas em estado latente, não vive senão pela personalidade do pai, que é simultaneamente chefe militar e grande sacerdote, com todas as conseqüências morais que daí decorrem, entre as quais é preciso colocar o infanticídio legal.
A criança, na Antiguidade, era a grande sacrificada, um objeto cuja vida dependia do juízo ou do capricho paterno.
Estava submetida a todas as eventualidades da troca ou da adoção, e quando o direito de vida lhe era concedido, permanecia sob a autoridade do pater familias até à morte deste.
Mesmo então não adquiria de pleno direito a herança paterna, já que o pai podia dispor à vontade dos seus bens por testamento.
Quando o Estado se ocupava dessa criança, não era de todo para intervir a favor de um ser frágil, mas para realizar a educação do futuro soldado e do futuro cidadão.
Poderíamos estudar a Antiguidade — e estudamo-la de fato — sob a forma de biografias individuais: a história de Roma é a de Sila, Pompeu, Augusto; a conquista dos gauleses é a história de Júlio César.
Na Idade Média
Nada subsiste desta concepção na nossa Idade Média. O que importa então já não é o homem, mas a linhagem.
Ao se abordar a Idade Média, uma mudança de método impõe-se: a história da unidade francesa é a da linhagem capetiana; a conquista da Sicília é a história dos descendentes de uma família normanda, demasiado numerosa para o seu patrimônio.
Para compreender bem a Idade Média, é preciso vê-la na sua continuidade, no seu conjunto.
Talvez por isso ela é muito menos conhecida e muito mais difícil de estudar do que o período antigo, porque é necessário apreendê-la na sua complexidade, segui-la na continuidade do tempo, através dessas cortes que são a sua trama.
E é preciso fazê-lo não apenas em relação às que deixaram um nome pelo brilho dos seus feitos ou pela importância do seu domínio, mas também nas gentes mais humildes das cidades e dos campos, que é preciso conhecer na sua vida familiar se quisermos dar conta do que foi a sociedade medieval.
Isto se explica, pois durante esse período de perturbações e de decomposição total, que foi a Alta Idade Média, a única fonte de unidade, a única força que permaneceu viva foi precisamente o núcleo familiar, a partir do qual se constituiu pouco a pouco a unidade francesa.
A família e a sua base fundiária foram assim, devido às circunstâncias, o ponto de partida da nossa nação.
(Fonte: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge”, Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)