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O quê significavam os “dez mandamentos” da Cavalaria – 3

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Gilbert de Clare, feito cavaleiro na véspera da batalha. Vitral em Tewkesbury Abbey, Gloucestershire, Inglatera.
Gilbert de Clare, feito cavaleiro na véspera da batalha.
Vitral em Tewkesbury Abbey, Gloucestershire, Inglatera.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




7º mandamento: Cumprirás exatamente teus deveres feudais, se não forem contrários à Lei de Deus

O feudalismo era a organização social da época, e condição de subsistência da civilização cristã. Portanto, é o dever do cavaleiro cumprir inteiramente seus deveres feudais.

A fidelidade feudal tomou um sentido muito especial, uma vida muito mais intensa, quando ela recebeu a nota da Cavalaria. Quando Raul de Cambrai fez queimar um mosteiro de religiosas em que estava a mãe de Benier, seu mais fiel vassalo, morrendo ela também queimada, diante disso esse vassalo diz:

“Meu Senhor Raul é mais traidor do que Judas, mas ele é meu senhor. Por nada do mundo eu lhe faltarei”.

Raul ainda o ofende, chamando-o de bastardo, e depois o esbofeteia. Benier se limita a dizer que se despedirá do serviço dele. Não reage nem se vinga.

O duque Nîmes leva essa fidelidade feudal ao extremo de dizer que não se casava porque todo o seu coração pertencia ao seu senhor.

Um traidor, Fromont, assassina seu senhor e quer extinguir toda a linhagem. O último dessa linhagem era uma criança de poucos meses, que foi confiada à guarda de um vassalo.

O traidor exige que o vassalo traga a criança para ele matar. O vassalo tem um filho da mesma idade. Então, fiel ao seu senhor, entrega o filho a Fromont e o filho é morto, mas a descendência do senhor está salva.

É levar a fidelidade feudal ao máximo que se pode conceber: sacrificar seu próprio filho para salvar a família do suserano.

Aubri, o borguinhão, matou os sobrinhos de seu vassalo Fouqueret e quis desonrar-lhe a filha.

Depois, vencido numa batalha, está a ponto de ser morto. Fouqueret faz esse raciocínio: “Deus, verdadeiro Rei, este é meu senhor. Se o matam, eu o terei traído”.

E ofereceu seu cavalo ao senhor, para ele fugir. O homem que tinha assassinado seus sobrinhos e tinha querido desonrar-lhe a filha, ele o ajuda a fugir, pois não queria ser traidor.

Se por acaso um desses cavaleiros se revolta, mas depois se arrepende, chora amargamente. Os cavaleiros medievais choram muito, pedem perdão.

Aquele Benier acaba matando Raul de Cambrai lealmente, em combate singular. Ele tinha, afinal de contas, todos os motivos para isso.

O Lidador, castelo de Beja, Portugal
O Lidador, castelo de Beja, Portugal
Depois ele se arrepende amargamente e faz uma peregrinação à Terra Santa, para obter perdão da grave falta que havia cometido: matar em luta leal o seu senhor, que tinha feito todas as infâmias contra ele. Mas por mais traidor que fosse, por mais infame, ele era o senhor feudal, e os mandamentos da Cavalaria tinham que ser obedecidos.



8º mandamento: Não mentirás e serás fiel à palavra empenhada

Roland, falando ao filho do rei da Pérsia, lhe diz: “Comigo, guarda-te de mentir, porque é mácula que muito faz arrepender-se”.

Esta é uma novidade cristã. Nunca se tinha dito aos soldados, antes do Cristianismo, que era uma desonra mentir.

A Igreja propõe isso aos soldados: não mentir, porque a mentira é uma desonra. Nunca faltar à palavra empenhada. Coisa muito característica é que a invocação mais comum do cavaleiro medieval era por Deus que não mente.

Um dos exemplos mais impressionantes dessa fidelidade à palavra empenhada é a de Bayard, já no tempo da decadência da Cavalaria.

Bayard era o primeiro cavaleiro francês, e portanto o primeiro inimigo de Henrique VIII da Inglaterra, que estava em luta contra a França. Para os ingleses, era de importância fundamental eliminar Bayard.

Se eles o conseguissem, o rei de França estaria meio liquidado. Num combate, Bayard vê que está perdido. Então, com um golpe de espada, ele desarma um cavaleiro inglês e o constitui prisioneiro.

Logo depois ele entrega a esse inimigo sua própria espada, e diz: “Eu me ponho sob a sua proteção”.

Quando os inimigos vêm para matar Bayard, o cavaleiro diz: “Não toquem nele, porque ele está sob minha proteção”. Levam então Bayard para o campo inimigo.

Henrique VIII ficou encantado com a notícia, e mandou buscar Bayard. Queria vê-lo, queria conhecê-lo. Trataram-no todos com cortesia, com todo o apreço.

Santo Eduardo III, rei da Inglaterra.
Santo Eduardo III, rei da Inglaterra.
Quando disseram que “agora o cavaleiro Bayard é nosso prisioneiro”, ele retrucou: “Não, eu não sou seu prisioneiro. Prisioneiro aqui é o cavaleiro tal”.

Mandaram entrar o cavaleiro inglês, que confirmou: “Sim, a coisa passou-se como ele diz. Eu sou prisioneiro dele, e ele está sob a minha proteção”.

Coisa inteiramente inimaginável, mas que está nas crônicas do tempo, é que Henrique VIII e o cavaleiro pediram a Bayard que desse uma volta ali pelos Estados imperiais, e depois o reconduziram até o campo francês, devolvendo-lhe a liberdade.

Devolvem espontaneamente a liberdade àquele que era o pior inimigo deles, porque estava empenhada a palavra daquele pequeno fidalgo que se tinha constituído prisioneiro.

Característico também disso é a prisão sob palavra, em que um cavaleiro é preso pelo inimigo e diz: “Você está preso e ninguém o está vigiando. Pode passear pela cidade, mas não saia dos limites da cidade”. E ele não sai.

João II, o Bom, foi aprisionado pela Inglaterra na Guerra dos Cem Anos, e lhe foi devolvida a liberdade sob certas condições. Ele voltou para a França, mas não pôde cumprir aquelas condições.

Retornou então para a Inglaterra, para novamente se constituir prisioneiro. Deixou o reino acéfalo, pois tinha que ser fiel à palavra empenhada.

Outro exemplo é de São Luís IX em relação aos tratados com a Inglaterra. Seus antepassados haviam feito várias guerras, que tinham tomado partes muito grandes do domínio inglês na França.

São Luís manda verificar os tratados e os documentos, e constata que o rei da Inglaterra tinha direito sobre algumas daquelas terras. E espontaneamente devolveu-as.



9º mandamento: Serás liberal, farás liberalidade a todos

Para dar um exemplo português, o Duque Gemes IV de Bragança vai andando por um caminho, e encontra um pobre que lhe pede esmola. Ele entregou ao pobre o chapéu, pediu-lhe que o segurasse, e em seguida começou a colocar moedas de ouro dentro do chapéu.

A cada nova moeda, perguntava se o pobre estava satisfeito. E o pobre, abismado, mantinha-se quieto. Quando o chapéu estava cheio de ouro, e mais por vergonha do que por outro motivo, o pobre acabou dizendo que sim, que estava satisfeito.

E o duque: “A Deus graças, que vos fartei de ouro”. E foi-se embora. Essa liberalidade, fazer esmola e não ser apegado ao dinheiro é característico do cavaleiro.

Bayard, esse grande general que deu grandes vitórias à França, era de pequena nobreza e foi sempre pobre. Nunca quis receber contribuições daquelas pessoas que se constituíam seus prisioneiros.

Godofredo de Bouillon e os marqueses visitavam constantemente os pobres dos exércitos cruzados e lhes distribuíam víveres. Nos perigos, era muito frequente o cavaleiro fazer um voto de construir um hospital para receber todos os pobres possíveis.



10º mandamento: Serás por toda parte o campeão do direito e do bem, contra a injustiça e o mal

É a coroa do Código. É um mandamento tão grande, que só mesmo a Igreja teria a idéia de propô-lo, ainda mais a soldados.

El Cid, Valladolid, Espanha.
El Cid, Valladolid, Espanha.
No Pontifical Romano, já vimos que o Bispo, ao armar o cavaleiro, dizia: “Com tua espada defenderás todas as coisas justas”.

No rito romano, vimos o bispo dizer ao cavaleiro: “Tudo que estiver por terra e for bom, levanta-o; tudo que estiver de pé e for mau, derruba-o”.

Victor Hugo tem um verso muito bonito a esse respeito. Ele diz sobre o cavaleiro: “Ele escuta por toda parte se alguém pede socorro”.

É essa ideia de que, onde quer que precisem dele, ele está pronto. Mais do que isso, ele procura por todo lado saber se alguém precisa dele. E esse alguém, que podia ser pobre, viúva ou órfão, podia ser também outro cavaleiro ou o rei, e podia ser principalmente a Igreja.

É ainda aqui uma manifestação da ideia feudal. Trata-se de servir o suserano, que é Deus, e o feudo desse suserano é todo o mundo. Os vassalos desse suserano são todo o gênero humano, sobretudo todos os cristãos.

De modo que é preciso trabalhar por toda a Igreja, é preciso trabalhar por toda a extensão do mundo.

A Igreja ainda levou a Cavalaria a um grau mais alto de dignidade criando as Ordens de Cavalaria, que eram Ordens religiosas com os três votos: pobreza, obediência, castidade.

Eram tão Ordens religiosas quanto a de São Bento, a de São Domingos ou a Ordem Franciscana, mas constituídas por cavaleiros e com a função militar.

Assim como os beneditinos rezavam e trabalhavam no campo, assim como os dominicanos pregavam a palavra de Deus, assim como os franciscanos davam o exemplo da pobreza, da mesma forma os cavaleiros de Rodes, de Cristo ou do Templo tinham como obrigação religiosa combater de espada na mão contra os inimigos e pela dilatação do reino de Deus.

São Bernardo, escrevendo sobre a Ordem do Templo, fez da Cavalaria o mais belo elogio.

Historicamente esse código da Cavalaria reinou durante séculos sobre milhões de almas altivas, puras e grandes. Não foi uma coisa no mundo da lua, mas algo que se realizou.

Esse código foi realmente seguido, foi realmente obedecido.

Os exemplos que citei são casos típicos, que refletem a Cavalaria e o ambiente da Idade Média. Se o cavaleiro era fiel a esse código, contava com a recompensa eterna. Ele esperava o Céu como prêmio, que se prometia a todo aquele que combatia.

Renaud de Tor diz numa canção de gesta: “O barão desceu do cavalo, atingido seu corpo por quatro dardos. Quando se viu à morte, que dor, que cólera!

Desembainha uma vez ainda sua espada, passa o braço em seu escudo, e todos os que ele atinge caem mortos. Mas o sangue que dos seus ferimentos escorre é muito abundante, ele não resiste mais e cai por terra.

Então se dirige a Deus e às suas virtudes: ‘Glorioso Senhor Pai, que fostes e sereis eternamente, tende piedade de minha alma, que meu corpo está perdido’.

Volta-se para a gente de França e a saúda muitas vezes. Depois a alma partiu, enquanto o corpo ficou estendido. ‘Te Deum laudamus’ — cantam os anjos, que a levam para o Céu”.

Essa era a morte com que sonhavam os cavaleiros, e como eles geralmente morriam. Com esse sentimento de confiança, com essa coragem até o fim, com essa varonilidade, com essa simplicidade, contando certo com a recompensa final.



Fontes bibliográficas

J.B. Weiss,“Historia Universal”- Tipografia la Educación, Barcelona, 1927, vol. V, p. 503
Funck-Brentano, “Le Moyen Âge” - Hachette, Paris, 1947, p. 154
Léon Gautier, “La Chevalerie” - Arthaud, Paris, 1959, pp. 31-32
Pe. Luís F. de Retana, C.SS.R., “San Fernando III y su Época” - Editorial El Perpetuo Socorro, Madrid, 1941, pp. 242-243 Paul Lacroix, “Moeurs, Usages et Costumes au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance” - Firmin Didot Frères, Fils et Cie., Paris, 1874, pp. 16-17
Paul Lacroix, “Les Arts au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance” - Firmin Didot Frères, Fils et Cie., Paris, 1874
Paul Lacroix,“Vie Militaire et Religieuse au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance” - Firmin Didot Frères, Fils et Cie., Paris, 1873
“Histoire des Ordres Monastiques, Religieux et Militaires, et des Congrégations Seculières de l’un et l’autre sexe, qui ont été établies jusqu’à présent” - Nicolas Gosselin, Paris, 1775




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