O relógio astronômico da Torre dell'Orologio, Pádua, recentemente restaurado |
Luis Dufaur Escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
O pai de Giovanni, Jacopo di Dondi, nascido por volta de 1293, como Richard Wallingford, ensinou Medicina e foi o inventor de um relógio que Antônio, um técnico paduano, montou na torre do palácio Capitano, em Pádua.
Aperfeiçoou igualmente um método que permitia a extração de sal de mananciais quentes que existiam perto de Pádua. O sal obtido pareceu suspeito e Jacopo foi obrigado a redigir “um breve tratado de quatro capítulos para se defender contra os seus detratores e seus rivais invejosos da invenção”. (Lynn Thorndike, A History of Magic and Experimental Science, vol. III, Columbia Univ. Press, 1934, p. 392)
O tratado devia ser convincente, pois a 20 de agosto de 1355 Jacopo di Dondi obteve do Príncipe de Carrara o monopólio exclusivo da extração de sal e sua venda isenta de taxas. O interesse que Jacopo dedicava aos astros levou-o a corrigir as tabelas astronômicas em uso.
Em 1424, Prosdocimo de Baldomandi comprovou que “as tabelas de movimentos planetários que Jacopo di Dondi, de Pádua, extraiu das tabelas afonsinas são mais simples e mais cômodas de usar, e que estão verificadas e corrigidas tão bem ou melhor que as próprias tabelas afonsinas” (“Mechanical Universe”, p. 19).
Jacopo era viúvo. Viveu em Pádua, na casa de seu filho Giovanni, desde 1348 até sua morte em 1359. É verossímil que pai e filho trabalhassem juntos nos planos do relógio astronômico, embora o tratado de Giovanni não mencione em parte alguma o papel de seu pai.
Esse extenso tratado de mais de 130.000 palavras explica em detalhe por que motivo construiu o relógio, como o construiu, como dispor os quadrantes e como decifrá-los, de que modo o conservar em estado de funcionamento e como corrigi-lo.
As explicações de Dondi são muito precisas. Ele especifica qual deve ser a espessura das placas de metal, o comprimento dos pregos e a colocação dos orifícios. Quando quase todos os relógios da época eram em ferro forjado, este é em cobre e bronze.
Detalhe do relógio astronômico na igreja de Santa Maria em Rostock, Alemanha, feito em 1472 por Hans Düringer. |
Dondi desenhou em primeiro lugar a armação heptagonal do relógio. Em sua parte superior, estavam instalados os quadrantes do Sol, da Lua e dos cinco planetas conhecidos no século XIV: Vênus, Mercúrio, Saturno, Júpiter e Marte.
Na parte inferior, havia um quadrante dividido em 24 horas, um calendário indicando as festas fixas e as festas móveis da Igreja e as linhas dos nós.
Em seguida, Dondi desenhou o movimento horário do relógio. É o desenho mais antigo que se conhece de um movimento de relojoaria automático.
Lamentavelmente, Dondi fornece poucas indicações explícitas. “Se o estudante que lê o meu manuscrito não compreende por si mesmo o meu relógio, perderá tempo se continuar a estudar o meu texto”. (Some Outstanding Clocks ..., p. 141).
Os Segredos de uma Máquina Maravilhosa
Não obstante, ele pormenorizou o conjunto de peças da engrenagem: “Rotação do círculo horário em 24 horas: 144 dentes, pinhão de 12 portador de uma roda de 12 dentes, engrenando numa roda de 24 dentes sobre um tambor.
“Portanto, o tambor tem 10 rotações em 24 horas; a roda grande de 120 dentes em prise com um pinhão de doze, portador de uma segunda roda de 80 dentes que tem, por conseguinte, 100 rotações por dia.
“A segunda roda engrena um pinhão de 10, portador de uma roda de escapo de 27 dentes que faz, portanto, 800 rotações por dia, provocando cada rotação 54 oscilações do volante, ou seja, 43.000 oscilações por dia, logo, uma batida de 2 em 2 segundos. Essa batida é a batida-padrão”.
O pêndulo de Dondi tem um volante circular em vez do pêndulo em liga metálica (foliot à regule), Nessa época, na Itália, o dia estava dividido em 24 horas, contadas a partir do pôr-do-sol. Dondi construiu, por conseguinte, um quadrante munido de tabelas gravadas e divididas dos dois lados em meses e dias.
Dessa forma, podia-se determinar o nascer e pôr-do-sol para cada dia do ano. Dondi, porém, adotou uma outra contagem; ele fez o seu ciclo de 24 horas começar ao meio-dia, achando que esse momento era mais seguro que o pôr-do-sol para servir de ponto de partida de seus cálculos astronômicos.
O quadrante das horas girava no sentido inverso ao dos ponteiros de um relógio atual; portanto, a leitura da hora fazia-se na borda inferior esquerda de cada graduação horária.
Para fazer com que o quadrante anual indicasse as 6 festas fixas, ele realizou um grande anel circular. Na borda superior, talhou 365 dentes para os 365 dias do ano.
No exterior do anel, gravou a duração de cada dia em horas e minutos a letra dominical, a data do mês e o nome do santo a festejar. A data do dia aparecia numa abertura feita na placa do quadrante.
O calendário das festas móveis exigia engrenagens de uma complexidade inaudita e só em 1842, 500 anos mais tarde o relojoeiro Jean-Baptlste Sosime Schwilgué conseguiu construir um outro, o do terceiro relógio astronômico de Estrasburgo.
Em 1582, a introdução do calendário gregoriano tornara a construção de calendários astronômicos ainda mais complicada.
Há cinco festas móveis, das quais a Páscoa é a mais importante porque, uma vez determinada a sua data, as datas das outras festas encontram-se automaticamente.
Para obter a data da Páscoa, Dondi construíra 3 correntes. A corrente superior tinha 28 elos, correspondentes aos 28 anos de um ciclo solar.
A segunda corrente tinha 19 elos correspondentes ao ciclo lunar e a corrente inferior tinha 15 elos correspondentes a um período de tempo utilizado no Direito Romano.
O calendário das festas fixas estava colocado sob o quadrante de Vênus e o calendário perpétuo sob o de Mercúrio.
Relógio numa rua de Rouen, França. |
Os quadrantes de Mercúrio e da Lua eram os que tinham os mecanismos mais complexos. Comportavam rodas ovais, executadas de acordo com os planos de Dondi.
Uma dessas rodas tinha os dentes talhados para dentro. É, sem dúvida, a primeira aplicação de tal técnica.
“No quadrante de Mercúrio, além da correção dos anos bissextos, encontra-se a indicação de uma segunda correção a efetuar-se 144 anos mais tarde, avançando a roda M de um dente. O argumento de Mercúrio tem um atraso anual de 42'5”, portanto, é preciso avançar o quadrante de 2/3 cada ano, com uma correção residual de 1º de todos os 29 anos”.
O desenho do quadrante da Lua mostra uma roda dentada oval correspondente à órbita elíptica desse planeta. Esse movimento é tão complicado que será necessário esperar até meados do século XVIII para que o inglês Thomas Mudge consiga, entre 1755 e 1760, construir um relógio astronômico com calendário lunar.
As engrenagens dos relógios de Su Song (1020–1101 d.C.) e de Jacopo Dondi dell Orologio (1293–1359), eram de uma tal complexidade que, após a morte de seus inventores, foi muito difícil encontrar artesãos capazes de repará-los, a despeito das instruções muito pormenorizadas que eles tinham tido o cuidado de deixar a respeito da construção, conservação e reparação dessas maravilhosas máquinas.
Sabemos, entretanto, que um certo Guilherme de Zelândia, instalado em Carpentras, logrou reparar o relógio de Dondi. Mas em 1529-1530, quando Carlos V viu o relógio em Pádua, ele não funcionava; e, depois dessa data, nunca mais voltou a ser mencionado.
Seria necessário esperar 1561 para que se pudesse construir um semelhante. A construção de instrumentos tão fascinantes quanto o relógio de Dondi põe o problema das relações que existem entre as “artes liberais” e as “artes mecânicas”, isto é, entre a ciência e a tecnologia. (H. A. Lloyd, Old Clocks, Ernest Benn e Dover Puhlications; Londres e Nova York, 1970, pp. 198-9)
Se as artes liberais não desempenham papel algum na construção de máquinas produtoras de energia hidráulica, desempenham um, e importante, na construção dos mecanismos e engrenagens de relojoaria.
Para realizar esses aparelhos complicados e precisos, cientistas e técnicos tiveram de colaborar estreitamente na mesma tarefa. Essa colaboração entre a ciência e a tecnologia é um fato raro e será preciso aguardar a segunda metade do século XIX para que ela se torne um fato consumado.
A conjunção desses talentos foi saudada com respeito e admiração. O relógio de Dondi era célebre em toda a Europa.
Relógio astronômico na catedral de Lund, Suécia |
Petrarca, que também foi amigo de Dondi, legou-lhe 50 ducados para a compra de um anel de ouro que deveria usar em lembrança dele. Petrarca fala de “mestre Giovanni di Dondi, filósofo nato e muito naturalmente o príncipe dos astrônomos.
Chamam-lhe 'Dell Orologio' em virtude do maravilhoso planetário que ele construiu e que os ignorantes tomam por um relógio ...” (Citado em Bedini e Maddison, “Mechanical Universe ...”, pp. 15-16).
Com efeito, ao contrário do relógio de Su Song, preciosamente escondido dos olhares profanos, o relógio de Dondi podia ser admirado e desenhado pelos astrônomos, engenheiros ou mesmo simples amadores.
Ele serviu durante muito tempo de protótipo à construção de outros relógios astronômicos das grandes cidades da Europa, sobretudo na Itália e Alemanha do Sul, onde ornaram as paredes de edifícios públicos e as torres de igrejas.
O seu prestígio era evidente. A partir da segunda metade do século XIV, são numerosos os pêndulos e relógios. Alguns chegaram até nós, quando não em perfeito estado, pelo menos em peças soltas.
Em nossos dias, dois pêndulos conservam-se ainda em perfeito estado: o de Wells que data de 1392, e o da catedral de Salisbury, que continua a dar horas desde 1386. (O pêndulo de Wells a que se refere o texto encontra-se na torre da catedral gótica da cidade. N. do T.)
(Autor: Jean Gimpel, “A revolução Industrial da Idade Média”, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, 222 páginas.)