Ideal de Cluny: monges contemplativos em luta contra o reinado de Satanás. |
Luis Dufaur Escritor, jornalista, conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
continuação do post anterior: Cluny e a formação do espírito da Cavalaria
Se a totalidade dos historiadores está de acordo sobre a importância de Cluny na formação da Idade Média, o mesmo não acontece quando estudam a causa ou as causas do que poderíamos chamar o fenômeno cluniacense.
Os monges de Cluny consagravam a vida à glorificação de Deus. Viviam retirados do mundo, reclusos em seus mosteiros, cumprindo rigorosamente um Ordo minuciosíssimo, que deles exigia cinco horas diárias dedicadas ao Ofício Divino.
Eram contemplativos cuja principal obrigação era louvar a Deus perenemente. E seus mosteiros atingiram alto grau de santidade, louvado pelos próprios medievais, tão exigentes nessa matéria.
O cronista Raoul Glabre, aliás ele mesmo cluniacense, proclama: “Saibam todos que esse convento não é igualado por nenhum outro no mundo romano, principalmente para libertar as almas que caíram sob o senhorio do demônio” (apud G. Duby, “Adolescence de la Chrétienté Occidentale”, p. 135).
E Jacques de Voragine, corroborando Raoul Glabre, conta a célebre visão do Abade São Hugo, a quem na véspera do Natal a Ssma. Virgem apareceu, com seu Filho nos braços, dizendo: “Eis que virá o dia em que vão ser renovados os oráculos dos profetas. Onde está o inimigo que até agora prevalecia contra os homens?”.
Ao ouvir estas palavras, relativas aos monges de Cluny, o demônio saiu do fundo da terra para desmentir a afirmação de Nossa Senhora, mas sua iniquidade nada conseguiu, porque de nada lhe adiantou percorrer todo o mosteiro: nenhum monge se deixou enganar, nenhum se desviou dos seus deveres na capela, no refeitório, no dormitório ou na sala do capítulo.
Jacques de Voragine completa a visão citando a versão do monge Pedro de Cluny, segundo a qual o Menino teria perguntado à sua Mãe: “Onde está agora o poder do demônio?”.
Ao que o maligno teria respondido: “Não pude, com efeito, penetrar na capela, onde se cantam os teus louvores, mas o capítulo, o dormitório, o refeitório estão abertos!”.
“Ora, eis que a porta do capítulo era demasiado estreita para ele entrar, a do dormitório demasiado baixa, a do refeitório obstruída por inúmeros obstáculos — tais eram a caridade dos monges, a atenção à leitura diária e a sobriedade no comer e no beber” (Jacques de Voragine, “La Legende Dorée”, Garnier Flammarion, Paris, vol. I, p. 59).
Completaremos esses elogios com mais um documento medieval, citado por H.E.J. Cowdrey:
“Cluny era a fonte a que todo o mundo praticamente recorria, como a um santuário da Religião, para o revigoramento espiritual de suas obras.“Os cluniacenses sustentaram um combate espiritual constante para subjugarem a carne ao espírito; na verdade, como diz o Apóstolo, para viverem como Cristo e para morrerem a fim de vencerem.
Nossa Senhora libera o cônego Teófilo que vendeu sua alma ao diabo.
Notre Dame de Paris, pórtico lateral.
“Mas vários deles foram chamados, e mesmo obrigados a contribuir para a construção, quer como Papas ou cardeais, quer como bispos, abades ou pastores.
“Quando o bálsamo de suas virtudes espirituais se difundiu amplamente, toda a terra, como se fosse uma só casa, ficou impregnada de seu perfume, e o fervor da religião monástica, que pouco a pouco aumentara, se inflamou com o zelo exemplar desses homens” (“Vita Sancti Morandi Confessoris”, apud H.E.J. Cowdrey, “The Cluniacs and the Gregorian Reform”, Oxford, 1970, p. 163).
Mas os cluniacenses influíram efetivamente em toda a vida medieval.
Ora, como é que, vivendo entregues completamente à oração, esses mesmos homens, quando saíam do mosteiro, resolviam rápida e brilhantemente as questões mais delicadas, influíam poderosamente em toda a vida temporal, cobriam o mundo de obras de arte incomparáveis.
E, como se nada tivessem feito, voltavam depois para suas celas e nelas retomavam a contemplação sem a menor dificuldade, conservando se sempre prontos a voltar a atividades prodigiosas, com a mesma paz de alma que mantinham no mosteiro?
Como e quando se preparavam eles para essa atuação?
A essa pergunta nenhuma resposta satisfatória foi dada até hoje pelos historiadores. Nenhum deles consegue atinar com o segredo que animava esses monges tão ativos e ao mesmo tempo tão contemplativos, sempre serenos e sem nenhuma agitação, ativos na contemplação e contemplativos na ação.
(Autor: Prof. Fernando Furquim de Almeida, “Catolicismo”)