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Roberto de Normandia no sitio de Antioquia |
Dispôs a Providência que a Idade Média fosse uma era histórica especialmente aguerrida, não só pela dupla compressão com que Carlos Magno teve que lutar — os sarracenos e os bárbaros — mas também pelos resíduos de espírito pagão que ficaram nos próprios católicos, por onde eram levados a desembainhar a espada por motivos insignificantes.
Gradualmente foi a Igreja dulcificando os costumes e canalizando esse ardor combativo para o serviço da Cristandade.
Até a época das Cruzadas, a defesa do território e do governo legítimo de cada povo era o mais elevado ideal que inspirava o coração dos guerreiros no momento das batalhas.
Mas eis que uma idéia nova, como um astro desconhecido que brilha com fulgor extraordinário no meio da noite, paira sobre a Igreja e atrai todos os olhares.
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Tomada de Jerusalém. Emil Signol, Museu das Cruzadas, castelo de Versailles |
Sua luz se projeta em um momento sobre a Europa inteira e acende em todo lugar um entusiasmo sagrado; todas as classes da sociedade cristã se agrupam, se interpenetram, confraternizam; os povos, que até pouco antes se desmembravam e se fracionavam para viver isolados em suas estreitas muralhas, se levantam simultaneamente como um só homem, uma só nação, um só exército; marcham sob o mesmo estandarte, obedecem ao mesmo impulso, devotam-se à mesma causa.
O que se passa então no mundo? Qual a grande nova que se diz e se repete no Oriente e no Ocidente?
Qual o objeto desse universal abalo das nações cristãs? A libertação de Jerusalém!
A Cruzada não é senão o mistério da Cruz, meditado e realizado, posto em pensamento e ação em toda a sua amplitude, notavelmente nos seus resultados, e não somente por um indivíduo ou por uma nação, mas por toda a Cristandade, por todo o Corpo Místico de Cristo, crucificado e ressuscitado.
Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo Ele mesmo profetizou, devia sofrer, mas também entrar na glória.
Segundo o rei Davi, devia ser perseguido e esbofeteado, saciar sua sede com fel e vinagre, ter os pés e as mãos perfumados, divididas suas roupas e sua túnica jogada à sorte.
Mas para Ele voltar-se-iam todos os confins da terra, adorá-lo-iam todas as famílias dos povos, a Ele caberia o Império, dominaria as nações.
Segundo Isaías, devia ser acabrunhado de opróbrios, quebrantado por nossos crimes.
Mas por isso teria uma longa posteridade, dividiria os despojos dos poderosos, receberia as nações por herança, golpearia a terra com a vara de sua boca, faria habitar juntos o lobo e o cordeiro, o leão e o cabrito, sob a direção de um menino; levantaria seu estandarte aos olhos das nações, e os povos acudiriam a Ele e lhe apresentariam suas homenagens. Seu sepulcro seria glorioso.
Segundo o Discípulo bem-amado, esse Cordeiro, imolado desde a origem do mundo, teria uma espada de dois gumes para ferir as nações rebeldes, governá-las-ia com vara de ferro e calcá-las-ia aos pés no lagar.
Com seus santos e seus anjos, julgaria e castigaria a grande Babilônia, a idólatra Roma, de quem o império anticristão de Maomé não é senão uma versão reduzida.
Seus servidores e seus combatentes seriam distinguidos por seu sinal: o sinal do Filho do Homem, o
thau do profeta Ezequiel; o
thau que primitivamente tinha forma de cruz; o
thau, última letra do alfabeto hebreu, porque Jesus Cristo crucificado é o fim de todas as coisas; o
thau que, em hebreu, é a primeira letra da palavra crucificado.
E dessas execuções da justiça divina pelo Cordeiro e seu exército, nunca o sangue dos culpados subiria até o freio dos cavalos.
E a Cruzada, o que é senão tudo isso? Não é a Cristandade inteira reunida sob a cruz, para sofrer e combater?
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Batalha das Navas de Tolosa, Espanha. |
Não é Jesus Cristo, outrora só e rejeitado por seu povo, que agora reúne as principais nações da Terra, o lobo e o cordeiro, o leão e o cabrito, o franco, o godo, o vândalo, o inglês, o lombardo, o italiano, o grego, o sírio, as nações outrora as mais bárbaras ou as mais requintadas?
Ele as reuniu à voz de um menino; Ele as reuniu sob seus estandarte, a Cruz; Ele as reuniu para sofrer e combater, como Jesus Cristo, que sofreu e morreu para combater e vencer, como Jesus Cristo ressuscitado e triunfante!
Na concepção do cavaleiro medieval, a guerra é o ato pelo qual um povo resiste à injustiça com o preço de seu sangue. Onde houver injustiça, há legítima causa de guerra até a satisfação.
A guerra é, depois da religião, o primeiro dos ofícios humanos: uma ensina o direito, a outra o defende; uma é a palavra de Deus, a outra o seu braço.
“Santo, santo é o senhor Deus dos Exércitos!” O Deus da Justiça, o Deus que manda o forte socorrer o fraco oprimido, o Deus que derruba as dominações soberbas.
O espírito das Cruzadas, a união do heroísmo à devoção, do amor ao próximo à combatividade, da espada à penitência, se mostrou com as mais brilhantes cores nas Ordens de Cavalaria.
Como o caçador, vigilante e armado no cimo da colina, investiga de que lado sopra o vento, assim a Europa, naqueles tempos, de lança em punho e pé no estribo, observava atentamente de que lado vinha a injúria.
Viesse ela de um trono ou da torre de um simples castelo, fosse preciso cruzar mares, campos ou vales, nada detinha seus guerreiros.
Não se avaliava o proveito ou o prejuízo: o sangue se derrama sem preço ou não se derrama, e a consciência o paga na terra de Deus, na eternidade.
A guerra transformou-se não só num serviço cristão, mas ainda num serviço monástico: viram-se batalhões de monges cobrir com o cilício e o escudo os postos avançados do Ocidente.
Os religiosos se animaram com bravura cavalheiresca; os cavaleiros se inflamaram com zelo religioso; o soldado se fez monge na perspectiva da Jerusalém celeste; o monge se fez soldado para libertação da Jerusalém terrestre.
Tomaram e conquistaram pela violência a Jerusalém da Terra, assim como só pela violência se conquista a do Céu.
Tais foram aqueles cavaleiros orantes e monges armados, cujos mosteiros eram fortalezas, que obedeciam com o mesmo fervor ao sino como à trombeta quando os chamava à batalha.
Eram os primeiros no ataque e os últimos na retirada. Enquanto sua espada feria, suas orações e cânticos entusiásticos se elevavam aos céus.
É assim que o grande São Bernardo, não contente em louvar a vida piedosa dos templários, governados por uma sábia regra, lhes traça uma justificação da guerra: Não há lei que impeça ao cristão golpear com o gládio; o que é proibido é a guerra iníqua, é sobretudo a guerra entre os cristãos.
“Matar os pagãos seria até mesmo proibido, se se pudesse impedir de qualquer outro modo suas corrupções e retirar-lhes os meios de oprimir os fiéis.
Mas atualmente é melhor massacrá-los, a fim de que sua espada não permaneça suspensa sobre a cabeça dos justos.
Os cavaleiros de Cristo podem combater os combates do Senhor, podem fazê-lo com toda a segurança. Quer eles matem o inimigo ou morram eles próprios, não devem conceber nenhum receio; padecer a morte por Cristo ou dá-la, longe de ser criminoso, é antes glorioso.
O cavaleiro de Cristo mata em consciência e morre tranquilo; morrendo, trabalha por si mesmo; matando, trabalha por Cristo. E não é sem razão que ele porta um gládio; ele é o ministro de Deus para castigo dos maus e exaltação dos bons.
Quando mata um malfeitor, não é homicida, mas (desculpai a palavra) malicida, e é necessário ver nele o vingador que está a serviço de Cristo e o defensor do povo cristão.
A morte dos pagãos faz a sua glória, porque ela é a glória de Cristo; sua morte é um triunfo, porque ela o introduz na morada das recompensas eternas”.
Entre as frágeis instituições que a Cavalaria tomou sob a sua guarda, havia uma sagrada entre todas: a Igreja. A Igreja, não tendo soldados nem muralhas para defender-se, estivera sempre à mercê de seus perseguidores.
Qualquer príncipe podia tudo contra ela. Mas quando a Cavalaria se formou, a sua preocupação foi proteger a fraca e oprimida Cidade de Deus, cuja liberdade era a própria causa do gênero humano.
Fundada por nosso Senhor Jesus Cristo para perpetuar a obra da Redenção entre os homens, a Igreja era a mãe, a esposa, a irmã de todo aquele que tivesse uma nobre alma e uma boa espada.
Tudo isso fez das Cruzadas um ciclo de operações militares para exaltação da Igreja: contra os mouros no Ocidente, na Sicília e na Espanha; contra pagãos no Norte; contra hereges e antipapas em Toulouse e na Itália.
Assim como em São Francisco de Assis a virtude do desapego dos bens terrenos refulgiu de um modo especial, assim nas Cruzadas brilhou como nunca o caráter militante da Igreja.