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A Idade Média à procura do Movimento Perpétuo para resolver o problema da energia

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Horloge de la Sapience, Henri Suso, Bibliothèque royale de Belgique, ms IV 111, f 13v.
Horloge de la Sapience, Henri Suso,
Bibliothèque royale de Belgique, ms IV 111, f 13v.


continuação do post anterior: A movimentada vida dos engenheiros medievais



Sabemos que, após a morte de Villard, duas gerações, pelo menos, utilizaram o seu álbum.

Os especialistas identificaram em certas folhas a escrita mais recente de dois comentadores anônimos do final do século XIII, denominados, por uma questão de comodidade, Magister I e Magister II.

Mas os desenhos de mecanismos são todos do punho de Villard e o mais interessante relaciona-se com o problema do movimento perpétuo.

Esse desenho reflete o interesse apaixonado com que os homens da Idade Média procuravam novas fontes de energia. Para aumentar a produção energética, eles investigaram além da energia eólia, hidráulica e das marés:
Projeto de movimento perpetuo de Villard de Honnecourt
Projeto de movimento perpetuo de Villard de Honnecourt

“O mundo inteiro acabou por ser apenas, aos olhos deles, um vasto reservatório de forças naturais que era possível captar à vontade e utilizar para satisfação das necessidades e dos desejos humanos.

“Sem a ousadia de sua imaginação e mesmo sem a fantasia de algumas de suas criações, a potência energética do mundo Ocidental jamais se poderia desenvolver” (Lynn White, Technologie médiévale et transformations sociales, Mouton, Paris-Haia, 1969, pp. 137-8.)

Pouco importa que os mecanismos do irrealizável movimento perpétuo, imaginados no século XIII, nunca tivessem funcionado.

O que importa é que tenham sido encontrados no século XIII cientistas e engenheiros para tentar construir esse movimento com fins práticos.

Villard de Honnecourt compartilha com outros contemporâneos seus da honra de ter trabalhado nesse sentido:

“Inúmeras vezes discutiram entre si os mestres para fazer girar uma roda por si mesma. Eis como é possível fazê-lo, por meio de malhetes não pares e mercúrio”.

Em 1269, Pierre de Maricourt, um dos grandes cientistas do seu século, sublinhava em sua obra sobre o magnetismo o vivo interesse dos investigadores por esse problema: “Vi muitos homens exaustos em sua investigação para inventar essa roda”.

Villard, por sua parte, pensava ter encontrado a boa solução, mas, nesse domínio, não foi um inovador, pois a noção de movimento perpétuo já era conhecida no século XII na Índia, onde florescia uma rica tradição de filosofia cíclica.

Reconstituição moderna do projeto de movimento perpetuo  de Villard de Honnecourt
Reconstituição moderna do projeto de movimento perpetuo
de Villard de Honnecourt
O emprego da bússola, já bastante generalizado no século XIII, levou Pierre de Maricourt a indagar se não se poderia obter, através do magnetismo, um movimento perpétuo semelhante ao movimento da gravidade.

Ele imaginou dois sistemas. O primeiro é o esquema de uma máquina animada de um movimento magnético perpétuo.

Eis como ele descreve o segundo:

“Um ímã esférico que, na condição de ser montado sem fricção paralela ao eixo celeste, giraria uma vez por dia. Corretamente inscrito numa carta dos céus serviria de esfera armilar automática para as observações astronômicas e os relógios, permitindo assim dispensar-se qualquer outro aparelho de medição do tempo.” (Technologie médiévale, op. cit., p. 137.)


(Autor: Jean Gimpel, “A revolução Industrial da Idade Média”, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, 222 páginas).

continua no próximo post: Energia industrial para invenções e “gadgets” em plena era medieval



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Energia industrial para invenções e “gadgets” em plena era medieval

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Catapulta, reconstituição moderna
Catapulta, reconstituição moderna



continuação do post anterior: A Idade Média à procura do Movimento Perpétuo
para resolver o problema da energia




Autor da primeira representação conhecida da serra hidráulica, Villard dá-nos uma nova prova da importância que a Idade Média atribuía à energia utilizada para fins industriais.

Sob um croqui, ele anota: “Por este meio faz-se uma serra serrar por si mesma”.

Essa serra é também a primeira máquina automática a dois tempos: “Ao movimento circular das rodas, criando um movimento alternado capaz de serrar, soma-se a regulagem auto- mática da madeira à serra”.

Sob o desenho dessa serra automática encontra-se o mais antigo esquema de um movimento de relojoaria. Esse mecanismo está ligado por um eixo à estátua de um anjo colocado no telhado de uma grande igreja.



Uma estátua dessas existia em Chartres, antes da sua destruição pelo fogo em 1836. O mecanismo fazia girar a estátua lentamente, acompanhando o curso do Sol no céu.

Villard explica que, “por esse meio pode-se fazer com que um anjo mantenha sempre o seu dedo apontado para o Sol”.

E em outra altura: “O desenho representa uma armação que sustenta um eixo vertical e um fuso horizontal sobre o qual assenta uma roda. Uma corda lastrada com um peso e enrolada em redor de uma polia passa horizontalmente e enrola-se duas vezes em torno do eixo vertical.

Relógio de sol medieval na fachada da catedral de Chartres, o autômato desapareceu num incêndio.
Relógio de sol na fachada da catedral de Chartres,
o autômato desapareceu num incêndio.
“A corda é dirigida para o fuso horizontal e aí se enrola 3 vezes, antes de passar em redor de uma segunda polia. Um segundo peso, inferior ao precedente, está suspenso na ponta da corda. A queda do peso mais pesado deflagra um movimento que faz girar o eixo vertical e o fuso horizontal” (The Sketchbook of Villard de Honnecourt, ed. R. Willis, Londres, 1859, p. 161).

Ainda antes do final do século XIII, os engenheiros medievais teriam aperfeiçoado o mecanismo de escapo e construído o relógio de pesos, destinado a desempenhar um papel tão importante na história das técnicas do mundo ocidental.

Na mesma lâmina do Carnet, no canto situado em baixo e à esquerda, Villard representou uma águia recheada de cordas e polias.

Diz o texto: “Por este meio pode-se fazer girar a cabeça da águia para o diácono durante a leitura do Evangelho”. Esse mecanismo engenhoso nada mais é senão um brinquedo automático ou, para empregar uma palavra em moda, um gadget.

Villard, segundo parece, adorava os gadgets, pelo menos tanto quanto as gerações de americanos nascidos depois da Segunda Guerra Mundial, e concebeu ainda dois mecanismos extremamente curiosos: um é o esquenta-mãos, o outro uma taça:

“Para se fazer um esquenta-mãos, faz-se primeiro uma espécie de bola de cobre, como uma batata, composta de duas metades que se encaixam uma na outra. No interior dessa bola de cobre deverá haver 6 arcos, igualmente em cobre, cada um deles montado sobre 2 pivôs.

“No centro, encontra-se um pequeno braseiro e mais 2 pivôs. Os pivôs serão alternados de modo que o braseiro se mantenha sempre em posição vertical.

“As brasas incandescentes nunca poderão escapar, se forem atentamente seguidas as instruções do desenho. Este mecanismo é bom para um bispo.

“Ele pode assistir sem hesitação à grande missa; enquanto o tiver em suas mãos, não sentirá frio algum durante o tempo em que houver fogo.

“O mecanismo está construído de maneira tal que, gire de que lado girar, o pequeno braseiro estará sempre direito”.

Esse mecanismo, descrito por Villard com tanta precisão, foi adotado para manter horizontais as bússolas marítimas e verticais os barômetros.

O outro objeto é um cálice conhecido pelo nome de taça de Tântalo: um pássaro está pousado no cimo de uma pequena torre, no interior de uma taça de vinho.

O pássaro parece beber quando se despeja vinho na taça. O mecanismo é explicado com a ajuda do desenho.

Mas o desenho, pouco exato, é enganador, porquanto mostra o bico do pássaro demasiado alto em relação à borda da taça.

Esse pássaro mecânico é um brinquedo já conhecido do mundo antigo. Está descrito no Problema XII de A Pneumática de Heron de Alexandria, que viveu no primeiro século da nossa era.

O galo canta ainda três vezes por dia na catedral de Estrasburgo.
O galo canta ainda três vezes por dia na catedral de Estrasburgo.
Os textos que dele nos chegaram são traduções em latim de manuscritos árabes.

A cópia incorreta do mecanismo que Villard fez mostra que ele nunca teve essa taça entre as mãos. Contentou-se em dar livre curso à sua imaginação, servindo-se de um texto latino.

Villard, como outros arquitetos de seu tempo, foi também engenheiro, construtor de máquinas de guerra.

Em seu Carnet, dedicou uma página aos desenhos pormenorizados de uma potente catapulta.

Infelizmente, falta uma página. Mas a página restante está inteiramente coberta com o desenho desse engenho militar.

A legenda explica: “Quem quiser construir o poderoso engenho a que se dá o nome de bodoque, deverá prestar muita atenção ao seguinte.

“Eis a plataforma, tal como assenta em terra. Na parte da frente, as duas molas e a corda frouxa, com a qual se leva novamente a verga, como se pode ver na outra página.

“Há um grande peso a transportar, porque o contrapeso é muito pesado, sendo constituído por uma arca cheia de terra. Ela tem de comprimento dez toesas grandes, nove pés de largo e doze de fundo. Pensai no impulso da flecha e tomai cuidado, pois ela deve ser colocada contra a travessa da frente”.

Villard também teria sido um construtor de pontes e esboçou um mecanismo muito complexo que permitia serrar madeira debaixo de água.

“Por meio deste engenho, serra-se os pilotis na água para assentar uma plataforma sobre eles”.

Uma lenda, sem fundamento histórico, atribui a construção de certas pontes, na França, a um grupo de homens devotos, talvez religiosos, que se deslocavam de uma cidade a outra segundo as necessidades do urbanismo local.



O relógio astronômico da catedral de Estrasburgo:




(Autor: Jean Gimpel, “A revolução Industrial da Idade Média”, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, 222 páginas).

continua no próximo post: Conhecimentos industriais e científicos da Antiguidade cuidadosamente aproveitados



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Conhecimentos industriais e científicos da Antiguidade cuidadosamente aproveitados

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Certos tratados do mundo antigo eram conhecidos na Idade Média. Conservamos 7 manuscritos do século X do Tratado da Arte Militar de Vegécio, escritor latino do século IV; chegaram-nos ainda 19 manuscritos do século XIII e, no mínimo, uma centena dos séculos XIV e XV.

Enfim, a obra de Vitrúvio, que constitui um manancial de informações sobre a técnica romana e a arquitetura clássica era facilmente encontrada nos mosteiros e cidades da 'Europa Ocidental.

Foi copiada e recopiada inúmeras vezes, entre outras, no século VIII, pelos clérigos de Jarrow, na Inglaterra.

Sabemos que no século IX, Eginhard, que era responsável pelas construções do imperador Carlos Magno, possuía um exemplar. Os ricos mosteiros de Fulda e de Reichenau conservavam uma copia de Vitrúvio cada um.



No século XI, um outro manuscrito foi caligrafado pelos beneditinos da Abadia de Saint-Pierre de Gand. Um século mais tarde, esse famoso texto foi recopiado 12 vezes.

No século XX, restam 55 exemplares que se escalonam entre os séculos X e XV.

Em 1414, o humanista italiano Poggio “redescobriu” um manuscrito de Vitrúvio entre os tesouros da biblioteca do Mosteiro de Saint-Gall.

Nessa época, acreditava-se geralmente que a Idade Média não conhecera a existência do arquiteto romano. Os intelectuais da Renascença nada fizeram para dissipar esse erro.

Os medievalistas tiveram dificuldade (ainda hoje têm) em corrigir o erro dos humanistas dos séculos XV e XVI. O Carnet de Notes de Villard, assim como outros documentos posteriores ou contemporâneos, provam, pelo contrário, a que ponto a civilização romana era apreciada pelos homens da Idade Média.

Os desenhos de Villard que se inspiraram em estátuas e monumentos antigos são em grande número.

Por exemplo, duas cabeças barbudas e coroadas de folhas, personagens vestidos de clâmide [manto dos antigos gregos], ostentando o barrete frígio, e um nu enigmático que brande um vaso de flores. Este último desenho é sombreado em tom castanho escuro. Todos são claramente de inspiração clássica.

Um croqui representando um monumento antigo ocupa toda uma folha e tem a seguinte legenda: “Vi outrora o túmulo de um muçulmano. Eis como era”.

Copia do tratado de Vitrúvio, por volta de 1390.
Wolbert H.M. Vroom Collection, Amsterdam
O Tratado de Arquitetura de Vitrúvio teve uma influência inegável sobre os temas estudados por Villard.

Tal como os outros arquitetos do mundo antigo, Vitrúvio era um homem das artes mecânicas, isto é, não tinha recebido qualquer formação acadêmica, a qual somente era acessível aos ricos.

Vivamente magoado com a inferioridade da condição social dos arquitetos, procurou obter para ele e seus colegas a consideração e o respeito de que deveriam gozar suas atividades de arquiteto.

Vitrúvio queria que a cultura do arquiteto fosse enciclopédica. O próprio Vitrúvio nunca atingiu esse ideal. Seu latim não era dos melhores. Entretanto, graças à extensão de seus conhecimentos e também às suas ambições intelectuais, conhecemos numerosos aspectos da tecnologia helênica e romana.

Villard foi a sobrepor figuras geométricas aos seus croquis de homens e animais. Esses desenhos são frequentemente reproduzidos pelos editores modernos e certos historiadores de Arte quiseram ver em Villard de Honnecourt o precursor dos cubistas, o que ele não foi.


(Autor: Jean Gimpel, “A revolução Industrial da Idade Média”, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, 222 páginas).


Continuação no próximo post: a Geometria a serviço do arquiteto medieval



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A degradação do cavaleiro

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Degradação de um cavaleiro
Degradação de um cavaleiro
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Se um cavaleiro violasse as leis da Cavalaria, manchasse a sua honra ou faltasse ao seu juramento, era então degradado.

A cerimônia da degradação era terrível. O cavaleiro indigno era conduzido à praça principal da cidade por um cortejo de cavaleiros vestidos de luto.

De vez em quando o cortejo parava, e um arauto proclamava em alta voz o crime cometido. No local da cerimônia o cavaleiro era posto sobre um cavalo de madeira, e eram retiradas então todas as peças de sua armadura, uma por uma. Isto era feito sob o escárnio e desprezo dos assistentes.

O cavaleiro estava armado como para o combate. Num estrado, o condenado primeiro era despojado da espada, escudo, elmo e cota de malha.

Atiradas à sua frente, essas armas eram marteladas com um ferro até estarem completamente inutilizadas. Ninguém poderia jamais servir-se de armas que tivessem sido de um mau cavaleiro.

Ao homem desarmado, o oficiante, que na maior parte das vezes era o suserano a quem pertencia o condenado, tinha deixado apenas as esporas. Estas eram-lhe então cortadas, com um machado, rente aos saltos. Depois eram esmagadas com a acha de armas.

De então em diante o cavaleiro destituído não era mais nada, nem mesmo um servo: um homem sem nome, sem parentes e sem amigos. Um morto vivo no campo civil.

O rito da exautoração da Cavalaria evoluiu também para o simbolismo dos seus gestos.

Antes de qualquer cerimônia, o clero recitava, diante do cavaleiro condenado à perda dos seus direitos, as vigílias dos mortos, como se aquele homem não fosse mais do que um cadáver vivo.

Cantavam em seguida o salmo “Deus laudem meam”, que pede para os traidores a maldição de Deus. Vinha a seguir o destroçar das armas e o cortar das esporas, ao qual se juntava por vezes o corte da cauda do cavalo do bandido.

Depois disso, de certa maneira correspondendo ao banho da investidura, se procedia o lavar da cabeça. O celebrante deitava sobre a cabeça do condenado a água morna de uma bacia. Estava assim lavada a unção.

O excluído era destituído com este gesto. Deitado numa padiola, coberto com um lençol e uma mortalha, era levado para uma igreja, onde se procedia às mesmas cerimônias.

Quanto ao escudo de exautorado, estavam-lhe reservadas as piores infâmias. Primeiro, era arrastado na lama, que simultaneamente o manchava moralmente e apagava os sinais que se encontravam pintados.

Assistia à desonra aquele de quem tinha trazido o brasão, mas com a ponta aguda do escudo voltada para cima, outro sinal tradicional de desonra. Depois disso o escudo era por sua vez martelado e ia juntar-se ao amontoado de ferros das outras armas.

Um cavaleiro degradado ficava em tal situação, que geralmente mudava-se de cidade, pois não tinha mais ambiente para continuar vivendo nela.




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Os dez mandamentos, ou código, da Cavalaria

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Igreja do Sangue de Cristo. Bruges, Bélgica.
Igreja do Sangue de Cristo.
Bruges, Bélgica.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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diversos blogs




Podemos dizer que não existiu um código, no sentido de um documento onde estavam escritos os mandamentos da Cavalaria.

Existiam regras, existia o ideal da Cavalaria que se espalhava entre os cavaleiros, e eles os conheciam e procuravam seguir, mas nunca foram formulados em itens e mandamentos.

Mais ou menos como com as regras de etiqueta e polidez. Elas certamente existem, tanto que as pessoas vivem e agem de acordo com elas, e os que não o fazem caem sob a sanção da sociedade, são considerados mal educados, etc.
Mas não existe um documento em que estejam escritas essas regras, como se fossem leis. Algumas pessoas procuraram formulá-las a partir da observação da realidade, mas em geral ninguém as segue por tê-las lido num manual, e sim porque foram educadas desse modo. As pessoas respiram aquilo com o ar.

A mesma coisa com o Código da Cavalaria. Existia o ideal, existiam as regras, os cavaleiros procuravam viver de acordo com elas, mas elas não estavam escritas.

Eles não agiam assim porque elas estavam escritas, mas porque tinham sido educados assim.

Alguns historiadores procuraram formular posteriormente essas regras verificando como é que os cavaleiros agiam, e a partir daí deduzindo as normas que eles seguiam instintivamente, reduzindo-as a preceitos definidos.

Um dos que fez este trabalho foi Léon Gautier, um dos melhores autores em matéria de Cavalaria. Ele formulou o Código da Cavalaria em 10 regras:

1. Crerás em tudo o que ensina a Igreja e observarás todos os seus Mandamentos;

2. Protegerás a Igreja;

3. Respeitarás todas as fraquezas e te constituirás seu defensor;

4. Amarás o país em que nasceste;

5. Não recuarás diante do inimigo;

6. Moverás aos infiéis uma guerra sem trégua e sem mercê;

7. Sempre cumprirás exatamente teus deveres feudais, se não forem contrários à Lei de Deus;

8. Não mentirás, serás fiel à palavra empenhada;

9. Serás liberal, farás liberalidade a todos;

10. Serás sempre e em toda parte o campeão do direito e do bem, contra a injustiça e o mal.

Vejamos agora como é que se realizou cada um desses mandamentos durante a Idade Média, se os mandamentos ficaram apenas no ar ou se de fato foram seguidos.

Godofredo de Bouillon, conquistador de Jerusalém.
Godofredo de Bouillon, conquistador de Jerusalém.
Para isso vamos citar alguns exemplos, que não serão apenas fatos históricos, mas também tirados das canções de gesta. Sabemos que essas canções não são documentos históricos, são romances.

Mas podemos nos servir delas, primeiro porque elas exprimem qual era o ideal da Cavalaria, como é que naquele tempo se julgava o que um cavaleiro devia ser; além disso elas refletem algo da realidade, pois se um fato que está contado ali não aconteceu, pelo menos é verossímil que acontecesse, estava na ordem das coisas que acontecesse, e ninguém achava aquilo absurdo. Mais ou menos como se dá com os romances literários de hoje.

As canções de gesta não têm nada de comum com a realidade de hoje, não refletem fatos concretos de hoje, e se fôssemos escrever um romance situando no mundo moderno fatos como aqueles, seria um absurdo.

Pelo contrário, se descrevêssemos num romance negociatas, patifarias, podemos não estar tratando de fatos reais, e tais patifarias e negociatas podem não ter acontecido daquela forma, mas a descrição refletiria o estado real, não seriam absurdos. Se não aconteceram, poderiam ter acontecido.

Na Idade média, a mesma coisa: os fatos que não são históricos poderiam ter acontecido, estavam na ordem natural das coisas. E muitos dos fatos contados nas canções de gesta são tradições de fatos que aconteceram.




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O quê significavam os “dez mandamentos” da Cavalaria – 1

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Dom Alfonso VI de Aragão.
Dom Alfonso VI de Aragão.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
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1º mandamento: Crerás em tudo o que ensina a Igreja e observarás todos os seus Mandamentos

Estabelece que o cavaleiro deve ter fé, professar a Fé Católica Apostólica Romana, que para os medievais era a lei certa. Isto é fundamental na Idade Média: eles têm a certeza da fé.

E é uma fé concreta, uma fé encarnada, que não se alimenta de abstrações nem existe no mundo da lua. Para o cavaleiro, Deus é o senhor feudal celeste. O laço que liga o cavaleiro a Deus é o laço feudal. A Religião é um vínculo feudal.

Essa fé viva, concreta, encarnada, existe em toda a sociedade. O carpinteiro, ao primeiro golpe de seu instrumento, costuma dizer: “Or, y soit Dieu” — Ora, que Deus aí esteja.

O barbeiro, ao tomar a sua navalha, também diz: “Or, y ait Dieu part” — Ora, que Deus aqui tenha parte. Os cavaleiros têm essa fé viva, concreta, encarnada. Naturalmente há sacrílegos, há alguns que se afastam disso, mas são exceções. Eles logo se arrependem e voltam.

Gautier afirma que nunca houve na Terra uma raça mais penetrada da ideia de Deus do que a dos cavaleiros medievais.

A fé se reflete para eles também na confiança em Deus. Confiança em que Deus os protege na guerra, lhes dará a vitória e conservará sua vida. Confiança na paz, nessa Providência que nunca abandonará seus servidores.

Uma das canções de gesta fala de um cavaleiro do qual caçoam porque é pobre. Ele diz: “Sim, eu sou pobre, mas Deus tem bastante. Que importa que eu seja pobre, se Deus é rico?”

O pai desse cavaleiro, quando o manda correr o mundo, dá-lhe quatro moedinhas e lhe diz: “Quando elas já tiverem sido gastas, Deus está no Céu”.

Ou seja, quando você já não mais as tiver, não tem importância, pois Deus está no Céu e não abandonará seus cavaleiros. É uma forma muito bonita de exprimir a confiança na Providência.

Essa fé também se manifesta no arrependimento. O medieval que comete grandes pecados, às vezes também se arrepende de maneira exemplar e faz grandes penitências.

Por exemplo, aquele imperador do Sacro Império, que depois de fazer as maiores tropelias, ser excomungado, ser deposto, se arrepende de tal modo que exige que seus servidores pisem no pescoço dele, porque assim ele queria castigar aquele órgão vocal que proferira blasfêmias contra a autoridade pontifícia.

Um grande pecado seguido de um arrependimento imenso e de uma penitência à altura revela uma fé muito profunda.

Outro, depois de cometer os maiores pecados, as maiores abominações diabólicas, acaba se arrependendo, chorando amargamente seus pecados e suportando o castigo máximo.

Ele é enforcado, dando mostras de grande penitência, incitando ainda seus companheiros de crimes a se arrependerem como ele e a terem confiança na misericórdia de Deus.

Já dissemos que Nossa Senhora é, para o cavaleiro medieval, a sua dama.

Eles têm uma devoção muito especial, mas também uma devoção muito varonil a Nossa Senhora.

Dom Affonso Henriques.
Dom Affonso Henriques.
Eles rezam muito. Uma oração simples, varonil. Assistem à Missa diariamente e comungam frequentemente.

Confessam-se antes de cada ato solene da vida, antes das batalhas, antes de uma longa viagem, sobretudo na hora da morte.

Se não têm um padre ao alcance, eles se confessam a um leigo, a um parente próximo ou até a um estranho.

Evidentemente não há a absolvição sacramental, não traz o efeito próprio da confissão sacramental, mas incitava, sem dúvida, os sentimentos de arrependimento e contrição.

O fato de a pessoa ter que contar a um amigo ou a um estranho seus pecados, evidentemente provocava uma grande confusão sua ante essas faltas. Era uma maneira de oferecer uma reparação a Nosso Senhor.

Na Canção de Vivien, nós vemos Vivien moribundo, com 15 anos, confessar-se a seu tio, o conde Guillaume: “Recuei um dia diante dos pagãos”. Não encontra nenhum outro pecado para confessar, na hora de morrer.



2º mandamento: Protegerás a Igreja

A Igreja apresenta esse mandamento de maneira impressionante na cerimônia do adoubement, em que o Pontífice diz ao cavaleiro que está sendo sagrado:

“Recebe esta espada, em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo, usada para tua defesa, para a da Santa Igreja de Deus, para confusão dos inimigos da tua Religião”.

Já vimos que o fim da Cavalaria é alargar as fronteiras do reino de Deus. É a força armada ao serviço da verdade desarmada. Esse é o ideal que a Igreja apresenta, e a realidade não foi diversa.

Por isso vemos muito frequentemente nas canções de gesta a expressão “manter a Cristandade”. Essa recomendação, esse ideal oferecido ao cavaleiro, era para ele uma obrigação.

Defender a Igreja também se manifesta, para o cavaleiro, na idéia de morrer pela Fé. Ele não pode viver sem preocupações, deve defender o povo e derramar seu sangue pela Fé.

Quer dizer, a todos os cavaleiros é proposto nada mais nada menos que o martírio. E Pierre d’Auvergne dirige a Nosso Senhor esta oração: “Senhor Jesus, Vós morrestes por mim e eu morro por Vós”.



3º mandamento: Respeitarás todas as fraquezas e te constituirás seu defensor

Este era um mandamento quase incompreensível para aqueles rudes senhores do alvorecer da Idade Média. Dizer a um germano que respeite os fracos e se constitua defensor deles é uma coisa ininteligível. Mas a Igreja propôs isto a eles.

George Castriota, dito Skanderbeg, herói da Albânia.
Museu de Kruja, Albânia
É verdade que Ela não propôs isto logo de início. Primeiro propôs que não prejudicassem os fracos; depois, que não deixassem os outros prejudicarem os fracos; e afinal, que defendessem os fracos.

Os fracos são os que não sabem ou não podem usar as armas: os clérigos, as viúvas, os órfãos. Já dissemos que no Pontifical Romano, na cerimônia do adoubement, o cavaleiro é constituído o defensor dos fracos, das viúvas, dos órfãos.

Sabemos que na civilização verdadeiramente cristã as viúvas têm uma posição muito especial e merecem uma estima, uma veneração muito especial. Elas são uma classe especial dentro da Igreja.

Na Canção de Cherrai de Nîmes, o rei oferece ao conde Guillaume os feudos de órfãos e viúvas. Portanto, maior vantagem para o conde. E o conde responde:

“E as viúvas? E os órfãos? Se alguém tocar nesses pequenos ou em suas terras, eis aqui a espada que cortará a cabeça dos traidores e ladrões”.

E Carlos Magno moribundo diz a seu filho: “Em relação aos pobres, deves te humilhar, deves ajudá-los e aconselhá-los”.

É coisa dura para a natureza humana um nobre, um cavaleiro, um soldado se humilhar diante dos pobres. É impossível propor uma coisa mais contrária às inclinações naturais.




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O quê significavam os “dez mandamentos” da Cavalaria – 2

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Armadura completa feita em Innsbruck, Áustria, por volta de 1500
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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4º mandamento: Amarás o país em que nasceste

Aí se entende, em primeiro lugar, amar a região, o feudo em que o cavaleiro nasceu. O conde de Flandres, diante de Jerusalém, muito se admira de que Deus tenha querido nascer numa região tão feia: “Eu bem prefiro o meu belo castelo de Arras”.

Para ele, não havia nada mais bonito do que o seu feudo de Arras, e até Deus devia ter nascido em Flandres.

Outro cavaleiro, ao morrer, diz assim: “Santa Maria, nunca mais verei Saint Quentin e Nesle”. Ao morrer, o que mais ele sente é nunca mais ver o seu feudo, nunca mais ver a sua terra natal.

Deve-se também entender aí o amor ao país, encarnado primeiramente no rei. Amar, portanto, ao rei. Talvez em nenhum outro país esse amor à pátria tenha chegado a mais alto grau do que na França.

Para todos os franceses, para aqueles rudes senhores feudais, essa beleza da França é um perpétuo encantamento. Aqueles homens, que com um golpe de espada cortam um mouro pela metade e ainda matam o cavalo, para eles a terra natal é a doce França, a bela França.



5º mandamento: Não recuarás diante do inimigo

Naturalmente não é um mandamento que repugna a um soldado, esta coragem de enfrentar a todo momento a dor e a morte. Melhor valeria ser morto do que ser chamado covarde — diz uma das canções de gesta.

O quotidiano do cavaleiro medieval é a luta armada, a possibilidade de ser gravemente ferido e morrer. Nessa coragem há dois componentes: o elemento germânico e o elemento cristão.

Sabemos que os germanos gostavam da guerra pela guerra, tinham uma coragem um tanto animal. Isso ainda se manteve para os cavaleiros feudais, e é o que explica uma certa coragem imprudente.

Mas havia também um elemento cristão, que Santa Joana d’Arc definiu com aquela famosa frase: “Os soldados batalharão e Deus lhes dará a vitória”.

É a coragem que nasce da confiança em Deus, e também da consciência do dever. Sabem que é um dever para com Deus combater, e combatem, arriscam a vida, arriscam a integridade corporal.

Armaduras dos husardos de Ian Sobieski, rei da Polônia.
Armaduras dos husardos de Ian Sobieski, rei da Polônia.
Há a confiança em que Deus lhes dará a vitória, e confiança também na vida eterna.

Não se pode imaginar um exército realmente corajoso que não creia na vida eterna, pois arriscar a vida, imaginando que não há nada depois da morte, é uma coisa monstruosa.

Mas se eu sei que, combatendo pela minha pátria, posso até morrer como mártir — supondo-se que ao combater pela pátria eu estou obedecendo a Deus — posso ter certeza de que vou para o Céu, e é claro que isto dá outro entusiasmo e outra coragem.

Os exemplos dessa coragem são inúmeros. Citemos o que ocorreu no castelo de Faria. O senhor de Faria (o fato se passa em Portugal, já na Renascença) vai fazer uma incursão contra os espanhóis e é aprisionado.

Os espanhóis o levam até junto do castelo, que ele comandava pelo rei. O filho tinha ficado no castelo, comandando em lugar do pai. Para ver se o pai convencia o rapaz a entregar o castelo, diante das muralhas os espanhóis mandam chamar o filho e ameaçam de matar o pai, se ele não entregasse o castelo.

Diante dos espanhóis, que estão armados e prontos para matá-lo se o filho não fizer o que eles mandam, ele incita o filho a defender o castelo que ele recebeu do rei de Portugal, e que o sangue dele, que vai ser derramado ali, sirva para fortificar a resistência do castelo.

Ele é imediatamente assassinado. Sabia que ia morrer, mas foi firme. É uma coragem completa.

Os portugueses na Abissínia, também. É um punhadinho, talvez uns 20 ou 30. Desembarcam na Abissínia, um país inteiramente desconhecido, para defender o imperador contra um oceano de mouros.

Na hora de escolher o comandante dessa tropa, aquele que certamente seria o primeiro a morrer, o almirante da esquadra, que é Vasco da Gama, diz que o escolhido não pode ser outro senão o irmão dele.

Para esse cargo, que implica o sacrifício certo da vida, ele escolhe o irmão, que era a esperança da família por ser um jovem de valor extraordinário.

E esse grupinho de portugueses entra pela Abissínia e vai combater com os mouros, em número vinte ou trinta vezes superior. Eles sabem que vão morrer, mas não hesitam, pois está ali um interesse de Deus.

Túmulo de um cavaleiro templário. Temple Church, Londres.
Túmulo de um cavaleiro templário.
Temple Church, Londres.
Os navegadores portugueses, já na Renascença, mas com o espírito medieval, são exemplo marcante dessa coragem.

Gente que entra numa casquinha de noz, para navegar num mar que eles não sabiam como era, não sabiam o que iam ver lá, nem que monstros viviam lá.

Mas trata-se de alargar a Fé e o império, e eles têm coragem. Uma canção de gesta diz: “Eis a morte sobre nós descendo, mas como cavaleiros nós vamos combater”.



6º mandamento: Moverás aos infiéis uma guerra sem trégua e sem mercê

Esse é o objetivo próprio e mais legítimo da coragem medieval: combater o infiel, combater o muçulmano.

Ali está uma representação, uma realização impressionante da palavra da Escritura: “Porei inimizade entre a tua descendência e a dela”.

Pois realmente foi Deus quem pôs essas inimizades entre os cavaleiros medievais e os muçulmanos. Por isso a vida do cavaleiro medieval tem como principal preocupação lutar contra o infiel.

Onde quer que haja um infiel, aí o cavaleiro medieval sente-se em casa para lutar. A tal ponto vai o ódio ao sarraceno, que eles têm a ideia de que tudo que não é cristão é sarraceno. Imaginam, por exemplo, que Clóvis era um rei sarraceno que se converteu.

No século XII, uma canção de gesta diz: “Se estivéssemos no Paraíso, desceríamos para combater os sarracenos”.

Era tal o desejo de lutar contra o sarraceno, que para isso eles seriam capazes até de abandonar o Paraíso. Sem a Cavalaria, talvez a Europa tivesse caído inteiramente sob o jugo muçulmano.




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O quê significavam os “dez mandamentos” da Cavalaria – 3

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Gilbert de Clare, feito cavaleiro na véspera da batalha. Vitral em Tewkesbury Abbey, Gloucestershire, Inglatera.
Gilbert de Clare, feito cavaleiro na véspera da batalha.
Vitral em Tewkesbury Abbey, Gloucestershire, Inglatera.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




7º mandamento: Cumprirás exatamente teus deveres feudais, se não forem contrários à Lei de Deus

O feudalismo era a organização social da época, e condição de subsistência da civilização cristã. Portanto, é o dever do cavaleiro cumprir inteiramente seus deveres feudais.

A fidelidade feudal tomou um sentido muito especial, uma vida muito mais intensa, quando ela recebeu a nota da Cavalaria. Quando Raul de Cambrai fez queimar um mosteiro de religiosas em que estava a mãe de Benier, seu mais fiel vassalo, morrendo ela também queimada, diante disso esse vassalo diz:

“Meu Senhor Raul é mais traidor do que Judas, mas ele é meu senhor. Por nada do mundo eu lhe faltarei”.

Raul ainda o ofende, chamando-o de bastardo, e depois o esbofeteia. Benier se limita a dizer que se despedirá do serviço dele. Não reage nem se vinga.

O duque Nîmes leva essa fidelidade feudal ao extremo de dizer que não se casava porque todo o seu coração pertencia ao seu senhor.

Um traidor, Fromont, assassina seu senhor e quer extinguir toda a linhagem. O último dessa linhagem era uma criança de poucos meses, que foi confiada à guarda de um vassalo.

O traidor exige que o vassalo traga a criança para ele matar. O vassalo tem um filho da mesma idade. Então, fiel ao seu senhor, entrega o filho a Fromont e o filho é morto, mas a descendência do senhor está salva.

É levar a fidelidade feudal ao máximo que se pode conceber: sacrificar seu próprio filho para salvar a família do suserano.

Aubri, o borguinhão, matou os sobrinhos de seu vassalo Fouqueret e quis desonrar-lhe a filha.

Depois, vencido numa batalha, está a ponto de ser morto. Fouqueret faz esse raciocínio: “Deus, verdadeiro Rei, este é meu senhor. Se o matam, eu o terei traído”.

E ofereceu seu cavalo ao senhor, para ele fugir. O homem que tinha assassinado seus sobrinhos e tinha querido desonrar-lhe a filha, ele o ajuda a fugir, pois não queria ser traidor.

Se por acaso um desses cavaleiros se revolta, mas depois se arrepende, chora amargamente. Os cavaleiros medievais choram muito, pedem perdão.

Aquele Benier acaba matando Raul de Cambrai lealmente, em combate singular. Ele tinha, afinal de contas, todos os motivos para isso.

O Lidador, castelo de Beja, Portugal
O Lidador, castelo de Beja, Portugal
Depois ele se arrepende amargamente e faz uma peregrinação à Terra Santa, para obter perdão da grave falta que havia cometido: matar em luta leal o seu senhor, que tinha feito todas as infâmias contra ele. Mas por mais traidor que fosse, por mais infame, ele era o senhor feudal, e os mandamentos da Cavalaria tinham que ser obedecidos.



8º mandamento: Não mentirás e serás fiel à palavra empenhada

Roland, falando ao filho do rei da Pérsia, lhe diz: “Comigo, guarda-te de mentir, porque é mácula que muito faz arrepender-se”.

Esta é uma novidade cristã. Nunca se tinha dito aos soldados, antes do Cristianismo, que era uma desonra mentir.

A Igreja propõe isso aos soldados: não mentir, porque a mentira é uma desonra. Nunca faltar à palavra empenhada. Coisa muito característica é que a invocação mais comum do cavaleiro medieval era por Deus que não mente.

Um dos exemplos mais impressionantes dessa fidelidade à palavra empenhada é a de Bayard, já no tempo da decadência da Cavalaria.

Bayard era o primeiro cavaleiro francês, e portanto o primeiro inimigo de Henrique VIII da Inglaterra, que estava em luta contra a França. Para os ingleses, era de importância fundamental eliminar Bayard.

Se eles o conseguissem, o rei de França estaria meio liquidado. Num combate, Bayard vê que está perdido. Então, com um golpe de espada, ele desarma um cavaleiro inglês e o constitui prisioneiro.

Logo depois ele entrega a esse inimigo sua própria espada, e diz: “Eu me ponho sob a sua proteção”.

Quando os inimigos vêm para matar Bayard, o cavaleiro diz: “Não toquem nele, porque ele está sob minha proteção”. Levam então Bayard para o campo inimigo.

Henrique VIII ficou encantado com a notícia, e mandou buscar Bayard. Queria vê-lo, queria conhecê-lo. Trataram-no todos com cortesia, com todo o apreço.

Santo Eduardo III, rei da Inglaterra.
Santo Eduardo III, rei da Inglaterra.
Quando disseram que “agora o cavaleiro Bayard é nosso prisioneiro”, ele retrucou: “Não, eu não sou seu prisioneiro. Prisioneiro aqui é o cavaleiro tal”.

Mandaram entrar o cavaleiro inglês, que confirmou: “Sim, a coisa passou-se como ele diz. Eu sou prisioneiro dele, e ele está sob a minha proteção”.

Coisa inteiramente inimaginável, mas que está nas crônicas do tempo, é que Henrique VIII e o cavaleiro pediram a Bayard que desse uma volta ali pelos Estados imperiais, e depois o reconduziram até o campo francês, devolvendo-lhe a liberdade.

Devolvem espontaneamente a liberdade àquele que era o pior inimigo deles, porque estava empenhada a palavra daquele pequeno fidalgo que se tinha constituído prisioneiro.

Característico também disso é a prisão sob palavra, em que um cavaleiro é preso pelo inimigo e diz: “Você está preso e ninguém o está vigiando. Pode passear pela cidade, mas não saia dos limites da cidade”. E ele não sai.

João II, o Bom, foi aprisionado pela Inglaterra na Guerra dos Cem Anos, e lhe foi devolvida a liberdade sob certas condições. Ele voltou para a França, mas não pôde cumprir aquelas condições.

Retornou então para a Inglaterra, para novamente se constituir prisioneiro. Deixou o reino acéfalo, pois tinha que ser fiel à palavra empenhada.

Outro exemplo é de São Luís IX em relação aos tratados com a Inglaterra. Seus antepassados haviam feito várias guerras, que tinham tomado partes muito grandes do domínio inglês na França.

São Luís manda verificar os tratados e os documentos, e constata que o rei da Inglaterra tinha direito sobre algumas daquelas terras. E espontaneamente devolveu-as.



9º mandamento: Serás liberal, farás liberalidade a todos

Para dar um exemplo português, o Duque Gemes IV de Bragança vai andando por um caminho, e encontra um pobre que lhe pede esmola. Ele entregou ao pobre o chapéu, pediu-lhe que o segurasse, e em seguida começou a colocar moedas de ouro dentro do chapéu.

A cada nova moeda, perguntava se o pobre estava satisfeito. E o pobre, abismado, mantinha-se quieto. Quando o chapéu estava cheio de ouro, e mais por vergonha do que por outro motivo, o pobre acabou dizendo que sim, que estava satisfeito.

E o duque: “A Deus graças, que vos fartei de ouro”. E foi-se embora. Essa liberalidade, fazer esmola e não ser apegado ao dinheiro é característico do cavaleiro.

Bayard, esse grande general que deu grandes vitórias à França, era de pequena nobreza e foi sempre pobre. Nunca quis receber contribuições daquelas pessoas que se constituíam seus prisioneiros.

Godofredo de Bouillon e os marqueses visitavam constantemente os pobres dos exércitos cruzados e lhes distribuíam víveres. Nos perigos, era muito frequente o cavaleiro fazer um voto de construir um hospital para receber todos os pobres possíveis.



10º mandamento: Serás por toda parte o campeão do direito e do bem, contra a injustiça e o mal

É a coroa do Código. É um mandamento tão grande, que só mesmo a Igreja teria a idéia de propô-lo, ainda mais a soldados.

El Cid, Valladolid, Espanha.
El Cid, Valladolid, Espanha.
No Pontifical Romano, já vimos que o Bispo, ao armar o cavaleiro, dizia: “Com tua espada defenderás todas as coisas justas”.

No rito romano, vimos o bispo dizer ao cavaleiro: “Tudo que estiver por terra e for bom, levanta-o; tudo que estiver de pé e for mau, derruba-o”.

Victor Hugo tem um verso muito bonito a esse respeito. Ele diz sobre o cavaleiro: “Ele escuta por toda parte se alguém pede socorro”.

É essa ideia de que, onde quer que precisem dele, ele está pronto. Mais do que isso, ele procura por todo lado saber se alguém precisa dele. E esse alguém, que podia ser pobre, viúva ou órfão, podia ser também outro cavaleiro ou o rei, e podia ser principalmente a Igreja.

É ainda aqui uma manifestação da ideia feudal. Trata-se de servir o suserano, que é Deus, e o feudo desse suserano é todo o mundo. Os vassalos desse suserano são todo o gênero humano, sobretudo todos os cristãos.

De modo que é preciso trabalhar por toda a Igreja, é preciso trabalhar por toda a extensão do mundo.

A Igreja ainda levou a Cavalaria a um grau mais alto de dignidade criando as Ordens de Cavalaria, que eram Ordens religiosas com os três votos: pobreza, obediência, castidade.

Eram tão Ordens religiosas quanto a de São Bento, a de São Domingos ou a Ordem Franciscana, mas constituídas por cavaleiros e com a função militar.

Assim como os beneditinos rezavam e trabalhavam no campo, assim como os dominicanos pregavam a palavra de Deus, assim como os franciscanos davam o exemplo da pobreza, da mesma forma os cavaleiros de Rodes, de Cristo ou do Templo tinham como obrigação religiosa combater de espada na mão contra os inimigos e pela dilatação do reino de Deus.

São Bernardo, escrevendo sobre a Ordem do Templo, fez da Cavalaria o mais belo elogio.

Historicamente esse código da Cavalaria reinou durante séculos sobre milhões de almas altivas, puras e grandes. Não foi uma coisa no mundo da lua, mas algo que se realizou.

Esse código foi realmente seguido, foi realmente obedecido.

Os exemplos que citei são casos típicos, que refletem a Cavalaria e o ambiente da Idade Média. Se o cavaleiro era fiel a esse código, contava com a recompensa eterna. Ele esperava o Céu como prêmio, que se prometia a todo aquele que combatia.

Renaud de Tor diz numa canção de gesta: “O barão desceu do cavalo, atingido seu corpo por quatro dardos. Quando se viu à morte, que dor, que cólera!

Desembainha uma vez ainda sua espada, passa o braço em seu escudo, e todos os que ele atinge caem mortos. Mas o sangue que dos seus ferimentos escorre é muito abundante, ele não resiste mais e cai por terra.

Então se dirige a Deus e às suas virtudes: ‘Glorioso Senhor Pai, que fostes e sereis eternamente, tende piedade de minha alma, que meu corpo está perdido’.

Volta-se para a gente de França e a saúda muitas vezes. Depois a alma partiu, enquanto o corpo ficou estendido. ‘Te Deum laudamus’ — cantam os anjos, que a levam para o Céu”.

Essa era a morte com que sonhavam os cavaleiros, e como eles geralmente morriam. Com esse sentimento de confiança, com essa coragem até o fim, com essa varonilidade, com essa simplicidade, contando certo com a recompensa final.



Fontes bibliográficas

J.B. Weiss,“Historia Universal”- Tipografia la Educación, Barcelona, 1927, vol. V, p. 503
Funck-Brentano, “Le Moyen Âge” - Hachette, Paris, 1947, p. 154
Léon Gautier, “La Chevalerie” - Arthaud, Paris, 1959, pp. 31-32
Pe. Luís F. de Retana, C.SS.R., “San Fernando III y su Época” - Editorial El Perpetuo Socorro, Madrid, 1941, pp. 242-243 Paul Lacroix, “Moeurs, Usages et Costumes au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance” - Firmin Didot Frères, Fils et Cie., Paris, 1874, pp. 16-17
Paul Lacroix, “Les Arts au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance” - Firmin Didot Frères, Fils et Cie., Paris, 1874
Paul Lacroix,“Vie Militaire et Religieuse au Moyen Âge et à l’époque de la Renaissance” - Firmin Didot Frères, Fils et Cie., Paris, 1873
“Histoire des Ordres Monastiques, Religieux et Militaires, et des Congrégations Seculières de l’un et l’autre sexe, qui ont été établies jusqu’à présent” - Nicolas Gosselin, Paris, 1775




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A Ordem de Cluny na História: quando os homens pareciam anjos

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Imagem de Nossa Senhora originária de Cluny e hoje venerada na basílica Saint-Denis em Paris
Imagem de Nossa Senhora originária de Cluny
e hoje venerada na basílica Saint-Denis em Paris
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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A carta de fundação da abadia, foi assinada em setembro de 910 pelo poderoso duque da Aquitânia Guilherme I.

O duque cedia a Bernon, abade de Baume-les-Messieurs, uma terra chamada Cluny, na diocese de Mâcon, a cerca de vinte quilômetros desta cidade, bem no centro da França.

A carta de fundação explicitava com precisão a criação de uma abadia que seguisse a Regra de São Bento.

Com Bernon, vieram alguns monges, os primeiros religiosos da nova abadia.

A fundação se enquadrava no projeto de reforma promovida por Bento de Aniane (c-750-821), o qual pretendia unir todos os mosteiros da Europa Ocidental sob a observância da Regra Beneditina.

Por esta filiação, se pode constatar o papel que Cluny desempenhará na difusão da reforma da Igreja  lançada mais tarde e de forma empenhada pelo papa Gregório VII (1073-1085): a denominada “reforma gregoriana”.

Cluny, conforme se pode depreender a partir do vocativo (São Pedro) da abadia, estava diretamente sujeita à Santa Sé, por isso subtraída à jurisdição do bispo diocesano de Mâcon.

Os abades de Cluny entre os séculos X e XII foram personagens importantes no seu tempo: Bernon (910-927), Odon (927-942), e principalmente os três mais famosos, Maïeul (948-994), Odilon (994-1049) e Hugo (1049-1109).

Depois deste tio-avô de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, a abadia conheceu tempos menos brilhantes, devido ao abaciado de Pons de Melgueil (1109-1122), figura instável.

Todavia, o seu sucessor conseguiu recuperar e sublimar até o prestígio de Cluny: Pedro de Montboisier (112-1156), dito o Venerável, homem de grande cultura e figura de proa da Cristandade medieval.

Era a época do apogeu de Cluny, com mais de 1180 mosteiros dependentes na Europa, dos quais mais de 800 só na França.

Isenta face ao poder secular dos senhores laicos e à jurisdição dos bispos, a abadia de Cluny conseguirá escapar ao controlo do poder régio até ao século XVI, ao contrário de muitas outras congéneres.

Naquela centúria, no entanto, os seus abades passaram a ser nomeados pelo rei de França, ao abrigo da Concordata de Bolonha de 1512.

Com o Concílio de Trento, Cluny organiza-se em torno de uma congregação. Um dos priores mais famosos de Cluny, o cardeal de Richelieu (entre 1629 e 1642) tentou unir a congregação à dos Mauristas (de St. Maur), conhecidos pela sua erudição e labor científico profundos.

Esta união não sobreviveu à morte de Richelieu (1644).

Também um intento de união com outra congregação beneditina francesa, a de St. Vanne, levado a efeito por Mazarin, também cardeal e ministro de França como Richelieu, gorou-se em 1654.

Os monges no refeitório na ceia presidida por Santo Odilon. M,s 722, fol 142v, Museu Condé, Chantilly.
Os monges no refeitório na ceia presidida por Santo Odilon.
M,s 722, fol 142v, Museu Condé, Chantilly.
As Luzes e o século XVIII revelaram-se ainda mais nefastos para Cluny, acelerando a sua decadência. Assim, em 1744, o bispo de Mâcon acabou por impor a sua jurisdição sobre esta velha abadia.

Reconstruiu-se então o edifício monástico ao gosto da época, embora a ocupação monástica fosse cada vez mais reduzida: em 1790, a comunidade não tinha mais de 35 monges.

Nesse mesmo ano, na sequência da Revolução Francesa iniciada em 1789, a abadia foi suprimida por decreto revolucionário, ficando à mercê da pilhagem, que ocorreu em 1793.

Depois foi posta à adjudicação em 1798, tendo sido comprada em hasta pública por um privado, que logo desmantelou a abadia.

Como ordem religiosa, esta grande abadia era a cabeça de um dos ramos mais importantes do monaquismo beneditino: a ordem de Cluny.

O abade do mosteiro era o superior da família cluniacense, com todos os abades e priores das centenas de casas da ordem a prestarem-lhe homenagem feudal de vassalagem, numa sujeição variável.

Era também este abade de Cluny quem nomeava os superiores dessas comunidades dependentes.

Nesta perspetiva, pode falar-se de um “monaquismo cluniacense”, ainda que a autonomia que a Regra Beneditina conferia aos mosteiros atenuasse essa sujeição, ao contrário da forte centralidade cisterciense.

Existiam as casas ditas “dependentes”, com superior nomeado e controlado pelo abade de Cluny, e as “subordinadas”, com o abade a ser eleito pela comunidade.

Deste último grupo faziam parte as cinco “filhas” de Cluny: Souvigny, Sauxillange, La-Charité-sur-Loire, St. Martin-des-Champs (Paris) e Lewes (Inglaterra).

Todavia existia uma uniformidade de observância e de costumes monásticos entre todas as casas cluniacenses.

A originalidade de Cluny traduzia-se essencialmente na liturgia, nutrida e apoiada pela frequência e grande duração dos ofícios.

Maquete da antiga abadia, no Museu em Cluny, França.
Maquete da antiga abadia, no Museu em Cluny, França.
Era de uma riqueza excecional, ímpar até aos dias de hoje, ilustrando a vitalidade de uma espiritualidade completamente direcionada para Deus.

Tudo era pouco para honrar e dignificar a Deus, diziam os cluniacenses, como forma de justificar a pompa, magnificência artística e estética e grande elaboração da sua liturgia e da arte dos seus belos mosteiros.

De facto, a arte cluniacense inscrevia-se nesta perspectiva grandiosa, de grande qualidade e apuro estéticos, com uma riqueza de simbolismo patentes nas artes plásticas e na arquitetura.

Os monges de Cluny, na sua expansão pela Europa, desempenharam um importante papel na vida e política da Igreja, mesmo na organização política, econômica e territorial de vastas regiões, assumindo-se quase como um senhor temporal e fundiário igual a tantos outros.

Mas a sua importância, superlativada pelos seus abades notáveis em torno do Ano Mil, foi maior em termos espirituais e na “alta” política europeia, como sucedeu quando o imperador germânico Henrique IV apelou a Cluny para mediar a Querela das Investiduras.

Também as peregrinações medievais muito devem a Cluny e à sua rede de mosteiros, principalmente ao longo dos chamados “caminhos franceses” em direção a Santiago e mesmo dentro das Espanhas, no “caminho francês”.

A tradição da hospedagem e apoio aos peregrinos eram apanágio da Regras Beneditinas e uma forma de enfatizar a importância social dos mosteiros que Cluny muito bem soube aproveitar.

Em Portugal, Cluny teve uma importância política menor em relação a outras ordens, como Cister ou os Mendicantes, por exemplo.

Em Portugal, depois do concílio de Coiança (1050-55, cânon 2) ter introduzido a Regra Beneditina em Portugal, vários foram os mosteiros que a seguiram.

No entanto, apenas três estavam “subordinados” a Cluny. Esses três mosteiros ditos cluniacenses foram S. Pedro de Rates, Santa Maria de Vimeiro e Santa Justa de Coimbra.


(Fonte, Infopedia, in Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016. [consult. 2016-02-28 12:57:27])




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O relógio astronômico do Ocidente nasceu na Idade Média

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Relógio astronômico de Dondi, ou Astrarium, feito no ano 1364 em Pádua.
Relógio astronômico de Dondi, ou Astrarium, feito no ano 1364 em Pádua.
Luis Dufaur
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Estranha coincidência: o mais famoso relógio astronômico chinês desapareceu quatro anos depois da criação do mais importante relógio astronômico da Europa Ocidental, o de Giovanni di Dondi, que comporta um escapo mecânico de vara de palhetas, numerador e roda de encontro acionado por pesos.

Esse sistema substitui o dos relógios de água utilizados até então. Os engenheiros medievais que, no entanto, tinham sabido utilizar a energia hidráulica para fins tão numerosos quanto variados, aperceberam-se rapidamente de suas limitações na construção de relógios.

Na Europa do Norte, no inverno, a água gela e os pêndulos param. As pesquisas para encontrar uma solução mecânica remontam à segunda parte do século XIII.

Em 1271, Robert l'Anglais escrevia: “Os fabricantes de relógios procuram fazer uma roda que execute uma rotação completa para cada círculo equinocial, mas não' conseguem descobrir a solução correta”. (H. A. Lloyd, Some Outstanding Clocks over Seven Hundred: Years 1250-1950, Leonard Hill, Londres, 1958, p. 5.)

Um manuscrito redigido alguns anos depois na corte de Afonso X de Castela inclui o desenho de um relógio cujo movimento é produzido pela queda de um peso.

O movimento é regulado pelo escoamento do mercúrio contido num tambor compartimentado, o qual gira em torno de um eixo horizontal.

Essa técnica, já utilizada foi tomada ao matemático e astrônomo Bhaskara que, em 1150, tinha fabricado um motor perpétuo com rodas, conhecido na Europa através dos textos árabes.

O texto de Giovanni di Dondi sugere que os pêndulos, de pesos e o escapo mecânico já eram familiares em meados do século XIV e que seus mecanismos existiam há várias dezenas de anos.

Maestro relojero. Jean Suso, "L'horloge de la Sapience", siglo XV.  BnF, français 455, folio 4
Mestre relojoeiro. Jean Suso, "L'horloge de la Sapience", século XV.
BnF, français 455, folio 4
A falta de novas provas os especialistas consideram o início do século XIV a data provável dos primeiros relógios mecânicos.

Um especialista inglês, Alan Lloyd, que reconstruiu na década de 1960 um modelo exato do pêndulo de Dondi, pensa que o pêndulo mecânico foi inventado entre 1277 e 1300. (H. A. Lloyd, Some Outstanding Clocks over Seven Hundred Years 1259-1950, Leonard Hill, Londres, 1958, p.5)

O texto de Robert l'Anglais parece corroborar essa data. É possível que Barthélemy, o Relojoeiro, tenha construído um relógio mecânico na Catedral de São Paulo em Londres, por volta de 1286, e que tenha existido em Canterbury um relógio semelhante, em 1292.

Em Paris o primeiro relógio público foi construído em 1300 por Píerre Pípelart, e sabemos que custou 6 libras turnesas. Esse modelo, que funciona, pertence ao Instituto Smithsoniano de Washington. O Museu das Ciências de Londres adquiriu um segundo modelo.

No Canto X do Paraíso, na Divina Comédia, escrita antes de 1321, Dante faz entrar o relógio mecânico na literatura. No canto intitulado “Canto do Quarto Céu” ele menciona poeticamente um relógio, suas engrenagens e até seu toque:

“Como um relógio quando nos chama à hora em que a esposa de Deus se levanta para cantar as matinas em honra de seu esposo, a fim de obter seu amor, e cujas rodinhas puxam e empurram outras, fazendo soar tim-tim numa nota tão doce que o espírito bem disposto se enche de amor”. (Dante, O Paraíso, X, v. 139-144)

(Autor: Jean Gimpel, “A revolução Industrial da Idade Média”, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, 222 páginas.)




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Um abade na ponta da tecnologia: Dom Richard Wallingford

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Dom Richard Wallingford (1292–1336), Abade de Saint-Albans trabalhando
Dom Richard Wallingford (1292–1336), Abade de Saint-Albans trabalhando
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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Um pêndulo astronômico foi graficamente representado pela primeira vez na miniatura de um manuscrito inglês do século XIV.

Nessa miniatura o inventor Richard Wallingford (1292–1336), Abade de Saint-Albans (que parece sofrer de uma desagradável doença de pele), aponta para seu pêndulo, com um dedo esticado.

Richard Wallingford era um homem notável, mas de temperamento difícil (foi ele quem mandou apreender, em 1331, as mós dos moinhos para pavimentar o pátio do mosteiro e humilhar os habitantes de Saint-Albans).

Ele teria adquirido na forja paterna algumas noções de ferragem e mecânica. Órfão aos 10 anos foi recolhido pelo prior que o mandou estudar em Oxford, ingressando depois no mosteiro de Saint-Albans, do qual viria a ser abade em 1326.

Além de seu custoso e complicado relógio, Wallingford concebeu novos métodos de trigonometria que lhe valeram o título de“pai da trigonometria inglesa”.

Também inventou dois instrumentos astronômicos o Albion e o Rectangulus. O Albion, semelhante ao equatório planetário, servia para determinar a posição dos planetas. Para os homens da Idade Média, foi um dos instrumentos mais importantes de cálculo astronômico.

Quanto ao Rectangulus, numerosos tratados e fragmentos de textos chegados até nós fazem a sua descrição.

“O Rectangulus era um instrumento formado por um grupo de quatro réguas de couro articuladas no topo de um eixo vertical com a ajuda de uma rótula orientável.

“A régua inferior tem gravada uma escala numérica. A régua superior tem as miras. Prende-se-lhe um fio de prumo que desce até à escala numérica da régua inferior. As réguas II e III são móveis e podem ser ajustadas de modo a formar um ângulo determinado com a régua inferior, a qual deve permanecer na horizontal”. (R. T. Gunter, Early Science in Oxford, vol. II, Oxford, 1923, p. 32).

O abade Richard of Wallingford aponta para seu relógio.
O abade Richard of Wallingford aponta para seu relógio.
As explicações deixadas por Wallingford são minuciosamente precisas, ao ponto de permitirem a reconstrução de um Rectangulus tal como era há 600 anos.

O seu tratado divide-se em duas seções: a construção e o emprego do instrumento. Certos desenhos são verdadeiros croquis de engenheiro.

Um deles mostra “uma régua graduada baseada na divisão por seis, em vez da divisão por cinco”. (Early Science in Oxford, p. 32.)

A paixão de Wallingford pela pesquisa e as invenções valeu-lhe a hostilidade dos seus próprios monges e até uma reprimenda do Rei Eduardo III.

O cronista de Saint-Albans, Thomas Walsingham, descreveu de forma pitoresca a oposição com que Wallingford se deparou desde que quis construir o seu relógio.

Os seus projetos, como os dos inventores de todos os tempos, foram considerados extravagantes, inúteis e dispendiosos.

“Richard executou na igreja um trabalho magnífico, um relógio que exigiu muito dinheiro e muito trabalho. A malevolência de seus irmãos monges, que consideravam esse pêndulo o cúmulo da loucura, não o fez abandonar a tarefa.

“Ele tinha, entretanto, a desculpa de ter decidido construir o relógio com pouca despesa, pois a igreja necessitava de reparações evidentes e admitidas por todos.

“Na ausência de Richard, os frades intrometeram-se, os operários tomaram-se exigentes e o trabalho começou com um orçamento importante. Mas teria parecido estranho que não se terminasse o que fora começado.

“Quando o mui ilustre Rei Eduardo III veio a Saint-Albans e visitou a abadia para aí rezar, notou os suntuosos trabalhos do relógio, enquanto que a reconstrução da igreja, danificada ao tempo do Abade Hugo, não avançava.

“O Rei censurou discretamente Wallingford por negligenciar as reparações e gastar tanto dinheiro na construção de uma máquina tão inútil quanto um relógio.

“Richard respondeu mui respeitosamente que, depois dele, seria fácil encontrar um número suficiente de abades e operários para reconstruir os edifícios do mosteiro, mas que, após sua morte, nenhum sucessor poderia terminar esse trabalho.

“Ele falava verdade pois que, nessa arte, nada apareceu de semelhante e ninguém inventou coisa alguma do mesmo gênero durante sua vida”. (Citado em S. Bedini e F. Maddison, “Mechanical Universe. The Astrarium of Giovanni di Dondi”, Transactions of the American. Philosophical Society, vol. 56, outubro de 1966, pp. 6-7).

Réplica do relógio de Dom Wallingford, catedral de St Albans, Inglaterra.
Réplica do relógio de Dom Wallingford, catedral de St Albans, Inglaterra.
John Leland, visitando a abadia em 1540, admirou o relógio que acreditou sem igual em toda a Europa:

“Pode-se observar nele o curso do Sol e da Lua, das estrelas fixas e até os movimentos das marés”. Fala também do tratado de Wallingford em que se descreve “esse admirável mecanismo”.

Esse tratado foi desconhecido até 1965, data em que o Dr. J. D. North chamou a atenção dos medievalistas para um manuscrito da biblioteca de Oxford que parecia ser o famoso tratado.

“O texto inclui quatro ou cinco ilustrações. Três delas mostram conjuntos de engrenagens ou projetos de transmissões mecânicas. Uma outra mostra o corte transversal de um quadrante, os ponteiros e o globo lunar de um relógio astronômico complexo.

“O texto explica as engrenagens do movimento dos corpos celestes, os cálculos desses movimentos com a ajuda de tabelas que são fornecidas, e o número de dentes de uma roda de engrenagem. O texto explica também como fazer funcionar a campainha de um relógio”.

Apesar da perfeição do relógio de Wallingford, o de Giovanni di Dondi conheceu maior renome.

(Autor: Jean Gimpel, “A revolução Industrial da Idade Média”, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, 222 páginas.)




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Uma vocação familiar para relógios nunca antes sonhados: os Dondi

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O relógio astronômico da Torre dell'Orologio, Pádua, recentemente restaurado
O relógio astronômico da Torre dell'Orologio, Pádua, recentemente restaurado
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs



O pai de Giovanni, Jacopo di Dondi, nascido por volta de 1293, como Richard Wallingford, ensinou Medicina e foi o inventor de um relógio que Antônio, um técnico paduano, montou na torre do palácio Capitano, em Pádua.

Aperfeiçoou igualmente um método que permitia a extração de sal de mananciais quentes que existiam perto de Pádua. O sal obtido pareceu suspeito e Jacopo foi obrigado a redigir “um breve tratado de quatro capítulos para se defender contra os seus detratores e seus rivais invejosos da invenção”. (Lynn Thorndike, A History of Magic and Experimental Science, vol. III, Columbia Univ. Press, 1934, p. 392)

O tratado devia ser convincente, pois a 20 de agosto de 1355 Jacopo di Dondi obteve do Príncipe de Carrara o monopólio exclusivo da extração de sal e sua venda isenta de taxas. O interesse que Jacopo dedicava aos astros levou-o a corrigir as tabelas astronômicas em uso.

Em 1424, Prosdocimo de Baldomandi comprovou que “as tabelas de movimentos planetários que Jacopo di Dondi, de Pádua, extraiu das tabelas afonsinas são mais simples e mais cômodas de usar, e que estão verificadas e corrigidas tão bem ou melhor que as próprias tabelas afonsinas” (“Mechanical Universe”, p. 19).

Jacopo era viúvo. Viveu em Pádua, na casa de seu filho Giovanni, desde 1348 até sua morte em 1359. É verossímil que pai e filho trabalhassem juntos nos planos do relógio astronômico, embora o tratado de Giovanni não mencione em parte alguma o papel de seu pai.

Esse extenso tratado de mais de 130.000 palavras explica em detalhe por que motivo construiu o relógio, como o construiu, como dispor os quadrantes e como decifrá-los, de que modo o conservar em estado de funcionamento e como corrigi-lo.

As explicações de Dondi são muito precisas. Ele especifica qual deve ser a espessura das placas de metal, o comprimento dos pregos e a colocação dos orifícios. Quando quase todos os relógios da época eram em ferro forjado, este é em cobre e bronze.

Detalhe do relógio astronômico na igreja de Santa Maria em Rostock, Alemanha, feito em 1472 por Hans Düringer.
Detalhe do relógio astronômico na igreja de Santa Maria em Rostock, Alemanha,
feito em 1472 por Hans Düringer.
Os modelos que se encontram atualmente no Instituto Smithsoniano e no Museu de Ciências são reproduções exatas da obra-prima de Dondi. Tão exatas que, apesar do distanciamento num passado de mais de seis séculos, a habilidade e a inteligência do italiano do século XIV apresentam-se-nos quase tão ricamente complexas quanto as engrenagens de uma máquina de calcular contemporânea.

Dondi desenhou em primeiro lugar a armação heptagonal do relógio. Em sua parte superior, estavam instalados os quadrantes do Sol, da Lua e dos cinco planetas conhecidos no século XIV: Vênus, Mercúrio, Saturno, Júpiter e Marte.

Na parte inferior, havia um quadrante dividido em 24 horas, um calendário indicando as festas fixas e as festas móveis da Igreja e as linhas dos nós.

Em seguida, Dondi desenhou o movimento horário do relógio. É o desenho mais antigo que se conhece de um movimento de relojoaria automático.

Lamentavelmente, Dondi fornece poucas indicações explícitas. “Se o estudante que lê o meu manuscrito não compreende por si mesmo o meu relógio, perderá tempo se continuar a estudar o meu texto”. (Some Outstanding Clocks ..., p. 141).

Os Segredos de uma Máquina Maravilhosa

Não obstante, ele pormenorizou o conjunto de peças da engrenagem: “Rotação do círculo horário em 24 horas: 144 dentes, pinhão de 12 portador de uma roda de 12 dentes, engrenando numa roda de 24 dentes sobre um tambor.

“Portanto, o tambor tem 10 rotações em 24 horas; a roda grande de 120 dentes em prise com um pinhão de doze, portador de uma segunda roda de 80 dentes que tem, por conseguinte, 100 rotações por dia.

“A segunda roda engrena um pinhão de 10, portador de uma roda de escapo de 27 dentes que faz, portanto, 800 rotações por dia, provocando cada rotação 54 oscilações do volante, ou seja, 43.000 oscilações por dia, logo, uma batida de 2 em 2 segundos. Essa batida é a batida-padrão”.

O pêndulo de Dondi tem um volante circular em vez do pêndulo em liga metálica (foliot à regule), Nessa época, na Itália, o dia estava dividido em 24 horas, contadas a partir do pôr-do-sol. Dondi construiu, por conseguinte, um quadrante munido de tabelas gravadas e divididas dos dois lados em meses e dias.

Dessa forma, podia-se determinar o nascer e pôr-do-sol para cada dia do ano. Dondi, porém, adotou uma outra contagem; ele fez o seu ciclo de 24 horas começar ao meio-dia, achando que esse momento era mais seguro que o pôr-do-sol para servir de ponto de partida de seus cálculos astronômicos.

O quadrante das horas girava no sentido inverso ao dos ponteiros de um relógio atual; portanto, a leitura da hora fazia-se na borda inferior esquerda de cada graduação horária.

Para fazer com que o quadrante anual indicasse as 6 festas fixas, ele realizou um grande anel circular. Na borda superior, talhou 365 dentes para os 365 dias do ano.

No exterior do anel, gravou a duração de cada dia em horas e minutos a letra dominical, a data do mês e o nome do santo a festejar. A data do dia aparecia numa abertura feita na placa do quadrante.

O calendário das festas móveis exigia engrenagens de uma complexidade inaudita e só em 1842, 500 anos mais tarde o relojoeiro Jean-Baptlste Sosime Schwilgué conseguiu construir um outro, o do terceiro relógio astronômico de Estrasburgo.

Em 1582, a introdução do calendário gregoriano tornara a construção de calendários astronômicos ainda mais complicada.

Há cinco festas móveis, das quais a Páscoa é a mais importante porque, uma vez determinada a sua data, as datas das outras festas encontram-se automaticamente.

Para obter a data da Páscoa, Dondi construíra 3 correntes. A corrente superior tinha 28 elos, correspondentes aos 28 anos de um ciclo solar.

A segunda corrente tinha 19 elos correspondentes ao ciclo lunar e a corrente inferior tinha 15 elos correspondentes a um período de tempo utilizado no Direito Romano.

O calendário das festas fixas estava colocado sob o quadrante de Vênus e o calendário perpétuo sob o de Mercúrio.

Relógio astronômico numa rua de Rouen, França.
Relógio numa rua de Rouen, França.
Leonardo da Vinci copiou certamente os quadrantes de Vênus e de Marte da natureza, pois o seu desenho faz aparecer detalhes que não se encontram no desenho do tratado de Dondi.

Os quadrantes de Mercúrio e da Lua eram os que tinham os mecanismos mais complexos. Comportavam rodas ovais, executadas de acordo com os planos de Dondi.

Uma dessas rodas tinha os dentes talhados para dentro. É, sem dúvida, a primeira aplicação de tal técnica.

“No quadrante de Mercúrio, além da correção dos anos bissextos, encontra-se a indicação de uma segunda correção a efetuar-se 144 anos mais tarde, avançando a roda M de um dente. O argumento de Mercúrio tem um atraso anual de 42'5”, portanto, é preciso avançar o quadrante de 2/3 cada ano, com uma correção residual de 1º de todos os 29 anos”.

O desenho do quadrante da Lua mostra uma roda dentada oval correspondente à órbita elíptica desse planeta. Esse movimento é tão complicado que será necessário esperar até meados do século XVIII para que o inglês Thomas Mudge consiga, entre 1755 e 1760, construir um relógio astronômico com calendário lunar.

As engrenagens dos relógios de Su Song (1020–1101 d.C.) e de Jacopo Dondi dell Orologio (1293–1359), eram de uma tal complexidade que, após a morte de seus inventores, foi muito difícil encontrar artesãos capazes de repará-los, a despeito das instruções muito pormenorizadas que eles tinham tido o cuidado de deixar a respeito da construção, conservação e reparação dessas maravilhosas máquinas.

Sabemos, entretanto, que um certo Guilherme de Zelândia, instalado em Carpentras, logrou reparar o relógio de Dondi. Mas em 1529-1530, quando Carlos V viu o relógio em Pádua, ele não funcionava; e, depois dessa data, nunca mais voltou a ser mencionado.

Seria necessário esperar 1561 para que se pudesse construir um semelhante. A construção de instrumentos tão fascinantes quanto o relógio de Dondi põe o problema das relações que existem entre as “artes liberais” e as “artes mecânicas”, isto é, entre a ciência e a tecnologia. (H. A. Lloyd, Old Clocks, Ernest Benn e Dover Puhlications; Londres e Nova York, 1970, pp. 198-9)

Se as artes liberais não desempenham papel algum na construção de máquinas produtoras de energia hidráulica, desempenham um, e importante, na construção dos mecanismos e engrenagens de relojoaria.

Para realizar esses aparelhos complicados e precisos, cientistas e técnicos tiveram de colaborar estreitamente na mesma tarefa. Essa colaboração entre a ciência e a tecnologia é um fato raro e será preciso aguardar a segunda metade do século XIX para que ela se torne um fato consumado.

A conjunção desses talentos foi saudada com respeito e admiração. O relógio de Dondi era célebre em toda a Europa.

Relógio astronômico na catedral de Lund, Suécia
Relógio astronômico na catedral de Lund, Suécia
Por volta de 1385, Philippe de Maísière, um amigo pessoal do inventor, escrevia que “o relógio é uma tal maravilha que os astrônomos mais solenes vêm de regiões muito longínquas para admirá-lo com o mais profundo respeito”. (Songe du viel pelerin, por G. W. Coopland, Cambridge Univ. Press, 1969, VoI. I, p. 606).

Petrarca, que também foi amigo de Dondi, legou-lhe 50 ducados para a compra de um anel de ouro que deveria usar em lembrança dele. Petrarca fala de “mestre Giovanni di Dondi, filósofo nato e muito naturalmente o príncipe dos astrônomos.

Chamam-lhe 'Dell Orologio' em virtude do maravilhoso planetário que ele construiu e que os ignorantes tomam por um relógio ...” (Citado em Bedini e Maddison, “Mechanical Universe ...”, pp. 15-16).

Com efeito, ao contrário do relógio de Su Song, preciosamente escondido dos olhares profanos, o relógio de Dondi podia ser admirado e desenhado pelos astrônomos, engenheiros ou mesmo simples amadores.

Ele serviu durante muito tempo de protótipo à construção de outros relógios astronômicos das grandes cidades da Europa, sobretudo na Itália e Alemanha do Sul, onde ornaram as paredes de edifícios públicos e as torres de igrejas.

O seu prestígio era evidente. A partir da segunda metade do século XIV, são numerosos os pêndulos e relógios. Alguns chegaram até nós, quando não em perfeito estado, pelo menos em peças soltas.

Em nossos dias, dois pêndulos conservam-se ainda em perfeito estado: o de Wells que data de 1392, e o da catedral de Salisbury, que continua a dar horas desde 1386. (O pêndulo de Wells a que se refere o texto encontra-se na torre da catedral gótica da cidade. N. do T.)

(Autor: Jean Gimpel, “A revolução Industrial da Idade Média”, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, 222 páginas.)




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O grande papel de Cluny na formação da Idade Média

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A vinda de Cristo em majestade ocupava lugar central na cosmovisão de Cluny.  Berzé-la-Ville, capela dos monges, inspirada na grande igreja de Cluny III
A vinda de Cristo em majestade ocupava lugar central na cosmovisão de Cluny.
Berzé-la-Ville, capela dos monges, inspirada na grande igreja de Cluny III
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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No século XX os estudos sobre Cluny se multiplicaram.

Deles o mosteiro saiu engrandecido, e sua gloriosa história, mais bem conhecida, provoca o interesse sempre crescente dos pesquisadores, suscitando mesmo em alguns um verdadeiro entusiasmo.

O pequeno mosteiro fundado em 910 pelo Bem-aventurado Bernon em terras doadas pelo Duque da Aquitânia, Guilherme o Piedoso, teve quatro grandes Abades — Santo Odon, São Maïeul, Santo Odilon e São Hugo.

Seus longos abaciatos se estenderam por dois séculos, constatando-se com surpresa que nesse período Cluny reformou completamente a vida monástica na Europa, contribuiu de modo eficaz para a reforma da Igreja, formou a Cristandade nos seus mais variados aspectos e a conduziu aos grandes feitos da Idade Média.

Cluny conquistou rapidamente a liderança da vida religiosa do Ocidente e nela se manteve, pelo menos durante o governo dos seus quatro grandes abades, com glória e majestade.

“Com Cluny – diz um historiador –, ao longo desses dois séculos ter-se-á essa impressão de solidez e permanência na tradição que, no passado, se esperava da Santa Sé; Cluny é verdadeiramente uma nova Roma” (Delaruelle, Latreille, Palanque, “Histoire du Catholicisme en France”, vol. I, p. 251).

“Não sei — diz outro autor — que entusiasmo, que voga, que moda salutar atrai todo mundo, Papas, príncipes e monges, a Cluny, como ao porto mais seguro.”

O estrangeiro se contagia: a Espanha e a Inglaterra. Cluny torna-se o guardião oficial da regularidade monástica.

“Um mosteiro decai na observância, o Papa o entrega ao zelo cluniacense. Hugo parece ser verdadeiramente o Abade dos abades, e, com exceção do Papa, ninguém é comparável a ele na Cristandade” (D. Charles Poulet, “Histoire de l’Église de France”, t. I, p. 124).

Torre de Cluny, a única remanescente da depredação revolucionária.
Torre de Cluny, a única remanescente da depredação revolucionária.
Queremos estudar os primeiros tempos do Sacro Império Romano Alemão?

Lá encontramos os cluniacenses dirigindo a Imperatriz Adelaide e ajudando com seus conselhos espirituais e políticos os três primeiros Otons, Conrado e Santo Henrique II a trabalharem pela restauração do Império de Carlos Magno.

É a reconquista espanhola que nos interessa?

De novo os cluniacenses aparecem colaborando na luta contra os muçulmanos.

É a história do Papado que nos chama a atenção?

Os cluniacenses lá estão para retirá-lo do opróbrio em que caíra nos séculos IX e X, e, cerrando fileiras em torno de um de seus monges, São Gregório VII, colaboram com ele na luta gigantesca que esse grande Papa trava com o Imperador Henrique IV para afirmar a primazia do espiritual sobre o temporal.

São as canções de gesta que despertam o nosso interesse?

Surge Cluny, com todo o seu prestígio, compondo, incentivando, propagando essas epopeias da Cristandade.

É o feudalismo que nos atrai?

Não terá sido Cluny o criador do feudalismo católico?

Enfim, é a Cristandade, em todo o seu esplendor, que nos seduz?

Como negar que foi esse incomparável mosteiro que a modelou com a perfeição com que hoje a conhecemos pela História?

(Autor: Prof. Fernando Furquim de Almeida, “Catolicismo”) 




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Cluny e a formação do espírito da Cavalaria

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Nossa Senhora com o Menino Jesus, imagem de Cluny hoje resgatada na basílica de Saint-Denis em Paris.
Nossa Senhora com o Menino Jesus,
imagem de Cluny hoje resgatada
na basílica de Saint-Denis em Paris.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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continuação do post anterior: O grande papel de Cluny na formação da Idade Média




Sem dúvida, Cluny tem seus opositores. Mas a Abadia foi tão grande, que ninguém ousa negar a sua grandeza e a sua participação efetiva em todos os acontecimentos marcantes da época, influindo sobre eles de um modo glorioso.

As discussões se travam em torno da maior ou menor participação que os cluniacenses neles tiveram. Como exemplo do que é discutido, vamos citar o artigo de E. Delaruelle sobre a parte que teve Cluny na formação da ideia de Cruzada.

Aproveitaremos o ensejo para transcrever o tópico inicial desse estudo, pois ele dará aos nossos leitores uma ideia do grande interesse dos pesquisadores pela história da célebre Abadia:

“Se do ponto de vista da história propriamente religiosa o papel de Cluny foi considerável no século XI, é possível que se tenha exagerado seu papel quando se trata de história política, social e literária. Há trinta anos dominou entre certos historiadores o que se poderia chamar um verdadeiro “pancluniacismo”.

“Tentou-se explicar por Cluny a vitalidade e a fecundidade dessa época. Concedeu-se a Cluny uma influência determinante na reforma gregoriana, no desenvolvimento da peregrinação de Santiago de Compostela, na redação das canções de gesta.

“Assim como se vê uma Igreja, sobretudo espiritual até essa época, organizar se então como sociedade jurídica e política, e um Papa santo como Gregório VII tornar-se um “Kriegsmann” e um “Finanzmann”, assim se veria a instituição monástica, sob a pressão das circunstâncias e para responder a apelos diversos, imiscuir-se cada vez mais no mundo” (Delaruelle, “L’idée de Croisade dans la littérature clunisienne du XIe. siècle et l’Abbaye de Moissac”, “Annales du Midi”, n° 75, Toulouse, 1963, pp. 419 420).

Passando à questão que nos interessa – isto é, mostrar que as discussões sobre o papel de Cluny em cada grande feito da Alta Idade Média não negam a sua grande contribuição, mas giram em torno de se precisar melhor a influência que neles teve o grande mosteiro.

Cluny teve influência determinante no ideal do guerreiro cristão. Estátua de Godofredo de Bouillon. Fundo: uma ruela de Jerusalém.
Cluny teve influência determinante no ideal do guerreiro cristão.
Estátua de Godofredo de Bouillon. Fundo: uma ruela de Jerusalém.
Cabe mencionar que, nesse artigo, Delaruelle considera excessiva a posição tomada por Anouar Hakem, o qual defende a tese de ter sido Cluny que “preparou as guerras santas, mais ou menos como os enciclopedistas prepararam a Revolução Francesa por um trabalho de educação dos espíritos”.

Embora essa opinião, “talvez atenuada”, seja também a de outros especialistas no assunto, como Chalendon, Boissonade e Joseph Bédier, Delaruelle a combate, mas acrescenta logo que se pode sustentar que “Cluny contribuiu poderosamente para a formação do tipo de “miles” cristão, esse personagem novo na História, herói das próximas cruzadas.

Em lugar de se agastarem com a “militia saecularis” “militia, malitia”– como acontecia com os monges anteriores, os escritores cluniacenses, ao contrário, celebravam as virtudes do cavaleiro que põe sua espada ao serviço da Igreja, e mesmo apreciaram suas qualidades esportivas ou mundanas.

Aos exemplos que citei em outro lugar, poder se ia acrescentar aqui o “Tibellus”, que glorifica o pai de Maïeul, e a “Deploratio” de Jotsald” (ibidem, p., 422).

Delaruelle, portanto, julgando embora exagerada a opinião de Anouar Hakem, não nega que Cluny contribuiu poderosamente para a formação do cavaleiro católico combativo, característico da Idade Média, que pôs sua espada ao serviço da Igreja, sempre pronto a servi la e disposto a verter o seu sangue em todas as epopeias que envolvessem a causa católica.

Poderíamos multiplicar exemplos semelhantes, mas a exiguidade do espaço não o permite. Cremos, no entanto, que este exemplo é suficiente para mostrar aos nossos leitores como não há entre os historiadores a menor dúvida sobre o grande papel de Cluny na formação da Idade Média.

(Autor: Prof. Fernando Furquim de Almeida, “Catolicismo”) 




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Elogio de São Gregório VII aos religiosos de Cluny – 1

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Ideal de Cluny: monges contemplativos em luta contra o reinado de Satanás.
Ideal de Cluny: monges contemplativos em luta contra o reinado de Satanás.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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Se a totalidade dos historiadores está de acordo sobre a importância de Cluny na formação da Idade Média, o mesmo não acontece quando estudam a causa ou as causas do que poderíamos chamar o fenômeno cluniacense.

Os monges de Cluny consagravam a vida à glorificação de Deus. Viviam retirados do mundo, reclusos em seus mosteiros, cumprindo rigorosamente um Ordo minuciosíssimo, que deles exigia cinco horas diárias dedicadas ao Ofício Divino.

Eram contemplativos cuja principal obrigação era louvar a Deus perenemente. E seus mosteiros atingiram alto grau de santidade, louvado pelos próprios medievais, tão exigentes nessa matéria.

O cronista Raoul Glabre, aliás ele mesmo cluniacense, proclama: “Saibam todos que esse convento não é igualado por nenhum outro no mundo romano, principalmente para libertar as almas que caíram sob o senhorio do demônio” (apud G. Duby, “Adolescence de la Chrétienté Occidentale”, p. 135).

E Jacques de Voragine, corroborando Raoul Glabre, conta a célebre visão do Abade São Hugo, a quem na véspera do Natal a Ssma. Virgem apareceu, com seu Filho nos braços, dizendo: “Eis que virá o dia em que vão ser renovados os oráculos dos profetas. Onde está o inimigo que até agora prevalecia contra os homens?”.

Ao ouvir estas palavras, relativas aos monges de Cluny, o demônio saiu do fundo da terra para desmentir a afirmação de Nossa Senhora, mas sua iniquidade nada conseguiu, porque de nada lhe adiantou percorrer todo o mosteiro: nenhum monge se deixou enganar, nenhum se desviou dos seus deveres na capela, no refeitório, no dormitório ou na sala do capítulo.

Jacques de Voragine completa a visão citando a versão do monge Pedro de Cluny, segundo a qual o Menino teria perguntado à sua Mãe: “Onde está agora o poder do demônio?”.

Ao que o maligno teria respondido: “Não pude, com efeito, penetrar na capela, onde se cantam os teus louvores, mas o capítulo, o dormitório, o refeitório estão abertos!”.

“Ora, eis que a porta do capítulo era demasiado estreita para ele entrar, a do dormitório demasiado baixa, a do refeitório obstruída por inúmeros obstáculos — tais eram a caridade dos monges, a atenção à leitura diária e a sobriedade no comer e no beber” (Jacques de Voragine, “La Legende Dorée”, Garnier Flammarion, Paris, vol. I, p. 59).

Completaremos esses elogios com mais um documento medieval, citado por H.E.J. Cowdrey:

“Cluny era a fonte a que todo o mundo praticamente recorria, como a um santuário da Religião, para o revigoramento espiritual de suas obras.

Nossa Senhora libera o cônego Teófilo que vendeu sua alma ao diabo.
Nossa Senhora libera o cônego Teófilo que vendeu sua alma ao diabo.
Notre Dame de Paris, pórtico lateral.
“Os cluniacenses sustentaram um combate espiritual constante para subjugarem a carne ao espírito; na verdade, como diz o Apóstolo, para viverem como Cristo e para morrerem a fim de vencerem.

“Mas vários deles foram chamados, e mesmo obrigados a contribuir para a construção, quer como Papas ou cardeais, quer como bispos, abades ou pastores.

“Quando o bálsamo de suas virtudes espirituais se difundiu amplamente, toda a terra, como se fosse uma só casa, ficou impregnada de seu perfume, e o fervor da religião monástica, que pouco a pouco aumentara, se inflamou com o zelo exemplar desses homens” (“Vita Sancti Morandi Confessoris”, apud H.E.J. Cowdrey, “The Cluniacs and the Gregorian Reform”, Oxford, 1970, p. 163).

Mas os cluniacenses influíram efetivamente em toda a vida medieval.

Ora, como é que, vivendo entregues completamente à oração, esses mesmos homens, quando saíam do mosteiro, resolviam rápida e brilhantemente as questões mais delicadas, influíam poderosamente em toda a vida temporal, cobriam o mundo de obras de arte incomparáveis.

E, como se nada tivessem feito, voltavam depois para suas celas e nelas retomavam a contemplação sem a menor dificuldade, conservando se sempre prontos a voltar a atividades prodigiosas, com a mesma paz de alma que mantinham no mosteiro?

Como e quando se preparavam eles para essa atuação?

A essa pergunta nenhuma resposta satisfatória foi dada até hoje pelos historiadores. Nenhum deles consegue atinar com o segredo que animava esses monges tão ativos e ao mesmo tempo tão contemplativos, sempre serenos e sem nenhuma agitação, ativos na contemplação e contemplativos na ação.

(Autor: Prof. Fernando Furquim de Almeida, “Catolicismo”) 




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Elogio de São Gregório VII aos religiosos de Cluny – 2

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São Gregório VII. Busto em ouro e prata na catedral de Salerno.
São Gregório VII. Busto em ouro e prata na catedral de Salerno.
Luis Dufaur
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D. Kassius Hallinger, autor da monumental história da reforma monástica na Alta Idade Média (Gorze–Kluny), tentou uma resposta num artigo importante publicado na “Deutsche Archiv fur Erforschung des Mittelalters”, resumido e publicado em inglês com o título “The spiritual life of Cluny in the early days”, na coleção de memórias sobre Cluny selecionadas por Noreen Hunt e reunidas no livro “Cluniac Monasticism In the Central Middle Age” (Mac Millan, 1970).

Antes de dar sua própria opinião, D. Kassius Hallinger classifica em cinco grandes grupos as várias explicações propostas.

São elas: o espírito litúrgico da Abadia, a abertura para o mundo, a fuga do mundo, a organização feudal de Cluny, e as raízes monásticas especiais que caracterizavam o mosteiro.

Pela simples enumeração se vê a oposição flagrante que há, por exemplo, entre a segunda e a terceira posições, ambas defendidas por grandes historiadores. O fato é que nenhuma delas satisfaz.

Essa divergência de opiniões é uma das maiores dificuldades para o bom conhecimento de Cluny, gerando mesmo confusões lamentáveis.

Nesse mesmo artigo de D. Kassius Hallinger há uma amostra curiosa dessa confusão. Gorze é o mosteiro mais característico da reforma monástica iniciada na Lorena ao mesmo tempo que a de Cluny.

Weigle viu no livro“Gorze Kluny” uma certa oposição entre esses dois movimentos de reforma. Ora, D. Kassius afirma num artigo que os valores monásticos de Cluny “não só moldaram um grande número de monges dos séculos X e XI, como também estenderam a sua influência além dos mosteiros e se fizeram sentir no próprio mundo secular de sua época”.

Em uma nota, refuta F. Weigle: “O êxito do movimento de reforma de que Cluny teve a liderança só pode ser explicado pelos valores monásticos de Cluny. Esse fato foi mencionado várias vezes em “Gorze Kluny”.

A despeito de tais afirmações, F. Weigle pôde falar de uma descrição contrastada com Gorze (“Deutsche Archiv”, 9, 585); ele não entendeu absolutamente o ponto principal do livro”.

Por tudo isso procuraremos, nesta série de artigos sobre Cluny, pôr um pouco de ordem em todas essas questões. De antemão pedimos desculpas aos nossos leitores pelo grande número de citações que seremos obrigados a fazer.

É que Cluny foi tão grande, que sua história frequentemente parece inacreditável, se não é corroborada pela autoridade de especialistas, por vezes nem sequer católicos, mas que não deixam de se empolgar pelos feitos de seus monges.

Antes de terminar essa introdução, queremos reproduzir o maior dos elogios que Cluny recebeu em toda a sua história.

É de São Gregório VII, ao abrir a 7 de março de 1080 o Concílio Romano que realizava anualmente.

É bom notar que esse elogio foi pronunciado dois anos depois de o Imperador Henrique IV ter ido a Canossa pedir perdão ao Papa, episódio em que muitos procuram ver uma oposição séria entre o grande Papa e São Hugo, então Abade de Cluny:

“Sabei, meus irmãos no sacerdócio, todos que vos reunis nesta Santa Assembleia, que entre todos os nobres mosteiros fundados além dos montes para a glória de Deus onipotente e dos Bem aventurados Apóstolos Pedro e Paulo, existe um que é propriedade particular de São Pedro, unido à Igreja de Roma por um pacto especial.

“Esse mosteiro é Cluny. Votado, desde a fundação, principalmente à honra e defesa da Sé Apostólica, pela graça e clemência divina e sob a direção de santos abades, chegou a uma tal grandeza e a uma tal santidade, que ultrapassa todos os mosteiros de além dos montes no serviço de Deus e no fervor espiritual.

“Nenhum outro o iguala, tanto quanto se possa julgar, embora haja um grande número de mosteiros mais antigos do que ele. Não houve em Cluny um só abade que não fosse santo. Monges a abades nunca faltaram a esta Santa Igreja, Mãe de todos eles.

Não dobraram o joelho diante de Baal nem diante dos ídolos de Jeroboão. Tomando por modelo a liberdade e a dignidade da Santa Sé de Roma, nobremente conservaram a autoridade conquistada por seus antepassados, e nunca se curvaram sob o domínio dos príncipes deste mundo, continuando a ser os defensores corajosos e submissos unicamente de São Pedro e de sua Igreja” (apud D. Usmer Berlière, “l’Ordre Monastique”, p. 219).

(Autor: Prof. Fernando Furquim de Almeida, “Catolicismo”) 




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Santo Odon e as origens do mosteiro de Cluny

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Devoção de um monge cluniacense a Nossa Senhora. Segundo alguns seria o próprio Santo Odon. Bibliothèque National de France, MSS. ms.latin 17716, fol 23
Devoção de um monge cluniacense a Nossa Senhora.
Segundo alguns seria o próprio Santo Odon.
Bibliothèque National de France, MSS. ms.latin 17716, fol 23
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs



continuação do post anterior: Elogio de São Gregório VII aos religiosos de Cluny – 2




Antes de prosseguirmos no estudo das causas do grande sucesso de Cluny, convém recordarmos rapidamente o histórico de sua fundação.

A legislação monástica promulgada para todo o Império por Carlos Magno e Luís o Piedoso exigia que todos os mosteiros adotassem a regra de São Bento. Assim sendo, a partir do século IX houve só mosteiros beneditinos no Ocidente.

Mas, de acordo com a regra de São Bento, esses mosteiros eram autônomos, sem nenhuma vinculação jurídica entre si.

Não houve propriamente uma Ordem religiosa. Percebendo os perigos dessa extrema descentralização, São Bento de Aniane, o conselheiro monástico de Carlos Magno e de Luís o Piedoso, tentou dar uma direção única às abadias do Império, mas sua obra não sobreviveu à sua morte.

Ora, as lutas entre os descendentes de Carlos Magno, tendo enfraquecido o Império, permitiram que novas invasões bárbaras – normandos, eslavos, etc. – penetrassem a fundo no Ocidente.

Essas invasões levaram a desordem e a destruição por onde passaram, e todas as grandes instituições carolíngias sofreram as consequências disso.

De todas elas, foi talvez o monaquismo a mais atingida. Os mosteiros, desamparados, foram pilhados, outros viram se obrigados a permitir, em troca de uma proteção, a ingerência desmedida dos senhores temporais em seus assuntos internos, e todos caíram num relaxamento que conduziu à inobservância da Regra e à consequente dissolução dos costumes.

No início do século X esboçou-se uma reação contra esse estado de coisas. Alguns monges santos, como São Geraldo de Brogne na Lorena, tentaram reerguer suas abadias, levando as novamente à fiel observância da Regra.

E para que mais amplamente se estendesse a sua ação, costumavam reunir sob um abaciato único os mosteiros que, desejando reformar se, se entregavam à sua direção.

O Bem-aventurado Bernon foi um desses monges precursores da grande reforma monástica. Sobrinho do Rei da França, Luís o Gago, ele entrara no mosteiro de São Martinho de Autun.

Depois de ali permanecer por algum tempo, percebeu que, por maiores que fossem os esforços de seu abade para a reforma, eles se perdiam devido à intromissão de outras autoridades na vida interna do mosteiro.

Bernon resolveu então fundar um mosteiro numa das propriedades de sua família. Foi assim que nasceu o mosteiro de Gigny.

Guillerme I o Piedoso faz a doação das terras de Cluny.
Guillerme I o Piedoso faz a doação das terras de Cluny.
Os bons resultados obtidos em Gigny foram logo conhecidos nos arredores. O Rei da Borgonha, Rodolfo I, apreciando o trabalho de Bernon, entregou-lhe o mosteiro de Baume para ser reformado. E com base nesses dois mosteiros o Bem-aventurado pôde realizar a obra que projetara.

Nessa época, Santo Odon, que seria o primeiro dos quatro grandes abades santos de Cluny, era um jovem conselheiro que servia na corte do Conde Foulques de Anjou, vassalo do Duque de Aquitânia, Guilherme o Piedoso. Era filho único de uma nobre e rica família do Maine.

Seu pai, Abon, o tinha doado a São Martinho de Tours logo após seu nascimento, mas o fizera às escondidas de sua mulher e de sua família, nada contando a ninguém.

Vendo o menino crescer muito bem dotado, arrependeu se da doação que fizera. Mantendo o segredo, encaminhou o para o serviço do Conde de Anjou.

Santo Odon distinguiu se nessa corte e prometia ser um grande cavaleiro. Percebeu, no entanto, que não era essa a vida que Deus desejava que ele levasse. Recorreu a Nossa Senhora, pedindo que o esclarecesse e fizesse ver quais eram os desígnios de Deus sobre ele.

Foi logo acometido por uma violenta dor de cabeça, que o impedia de se desincumbir direito de suas obrigações. Durante três anos essa dor de cabeça não o abandonou.

A princípio tentou continuar na corte, cumprindo rigorosamente os seus deveres, mas logo teve de reconhecer que não poderia ali se manter.

Voltou para a casa paterna, onde Abon usou de todos os recursos possíveis para curá lo. Tudo foi inútil.

O pai teve de se render à evidência: São Martinho de Tours cobrava a doação que ele fizera. Abon contou tudo a Odon.

“Não tinha outra saída — dizia o Santo quando contava a sua vida aos Monges — senão refugiar me junto de São Martinho, receber a tonsura, e de bom grado votar me ao seu serviço, pois a ele fora doado sem o meu consentimento”.

Santo Odon aos pés de Nossa Senhora, detalhe da iluminura acima.
Santo Odon aos pés de Nossa Senhora, detalhe da iluminura acima.
A dor de cabeça cessou imediatamente. Santo Odon foi para o cabido da Igreja de São Martinho do Tours.

Durante a sua permanência entre os cônegos, leu a Regra de São Bento e ficou encantado com a vida monástica, mas não via em nenhum mosteiro que conhecia a observância dessa Regra que tanto o atraía.

Por outro lado, os cônegos de São Martinho de Tours viviam também em desordem, e não suportavam a presença de Odon, pois a vida virtuosa que este levava os incomodava.

O Santo retirou se para uma casa próxima da igreja, e ali dividia o seu tempo entre o cumprimento de suas obrigações de cônego e a vida de eremita.

Um de seus amigos na corte do Conde de Anjou desejava entrar no estado religioso, e foi procurá-lo em Tours. Depois de viverem juntos durante algum tempo, saíram os dois em peregrinação, procurando um mosteiro verdadeiramente observante da Regra.

Viajaram muito tempo e não o encontraram. Santo Odon voltou para Tours, e seu companheiro Santo Adgrim dirigiu se a Roma, a fim de pedir aos Apóstolos São Pedro e São Paulo as luzes necessárias para seguir a sua vocação.

A caminho de Roma, passou pela abadia de Baume, e não pôde conter a sua surpresa encontrando um mosteiro observante. Avisou Santo Odon, que lhe foi ao encontro, e ambos pediram ao Bem aventurado Bernon que os recebesse entre os seus monges.

Foram logo aceitos, e iniciaram em Baume a vida monástica que tanto desejavam. Santo Adgrim não chegou a fazer a profissão monástica.

Retirou se para uma caverna próxima do mosteiro e foi eremita até o fim de sua vida, morando sempre em lugares próximos dos mosteiros onde estava Santo Odon.

Este permaneceu algum tempo em Baume e depois em Gigny, apesar de violenta oposição que lhe movia o Monge Guy, sobrinho do Bem aventurado Bernon.

O Duque Guilherme da Aquitânia teve conhecimento da vida regular que havia em Baume e em Gigny.

Havia muito tempo ele desejava fundar um mosteiro em suas terras, para reparar um crime que cometera na mocidade. Mandou chamar Bernon. Ambos se encontraram num local conhecido por Cluny, onde Guilherme treinava os seus cães de caça.

Depois de expor os seus projetos, o Duque perguntou ao Abade se aceitava fundar esse mosteiro. Diante da resposta afirmativa, pediu lhe que escolhesse, ele mesmo, as terras que desejava em seus imensos domínios.

— Escolho estas — respondeu o Abade.

— Mas estas não posso dar, pois nelas tenho o melhor tempo de treinamento de meus cães de caça.

— Senhor Duque, bem sabeis que as preces dos monges vos servirão mais, diante de Deus, do que os latidos dos cães. Expulsai os cães e recebei os monges.

E o Duque nada teve para responder.

Em 910, na cidade de Bourges, Guilherme o Piedoso entregou solenemente ao Bem aventurado Bernon as terras de Cluny, na presença da Duquesa e de toda sua família.

Santo Odon, abade de Cluny.
Santo Odon, abade de Cluny.
Assistiram ao ato vários senhores feudais, muitos bispos e clérigos, e vários monges, entre os quais Santo Odon.

Num documento assinado por todos os presentes, o Duque da Aquitânia isentou Cluny de qualquer ingerência sua, dando aos Apóstolos São Pedro e São Paulo as terras e o mosteiro que ali se construiria, e cobrindo de anátemas todos aqueles que, seus parentes ou não, no presente ou no futuro tentassem delas se apoderar ou interviessem, sob qualquer pretexto, na vida interna do mosteiro.

O Papa, como Sucessor dos Apóstolos, deveria zelar pelo mosteiro, a ele incumbindo a defesa desse patrimônio entregue à guarda do Bem aventurado Bernon e da Santa Sé.

O próprio Duque da Aquitânia foi a Roma para obter a ratificação do documento e pagar as primeiras doze peças de ouro para manutenção da luminária da Igreja dos Apóstolos, como Cluny deveria fazer todos os anos, de acordo com o direito feudal.

Santo Odon foi para Cluny com outros monges de Baume e Gigny. Ao que parece, o que levou o Bem aventurado Bernon a enviá-lo para o novo mosteiro foi a hostilidade de Guy.

Ao morrer, em 926, Bernon deixou a este último, por testamento, alguns dos mosteiros que dirigia, entre eles Baume e Gigny, e outros a Santo Odon, entre os quais Cluny. Como Cluny era o mais pobre dos mosteiros e estava ainda em construção, o Bem aventurado Bernon tirou de Gigny o domínio de Alafracta e o entregou a Santo Odon, para com ele manter Cluny.

Guy impugnou a doação, e à força se apoderou de Alafracta. Santo Odon recorreu à Santa Sé e o Papa lhe deu ganho de causa enquanto os monges de Gigny vivessem no mosteiro de Cluny.

Santo Odon pôde então entregar se livremente à formação de seus monges e empreender a reforma monástica que estes realizariam com tanto brilho na França, na Itália e até na Espanha.

Os cluniacenses o consideravam o seu verdadeiro fundador, e foi realmente ele que introduziu no mosteiro esse espírito, essa alma que modelou a Idade Média.

(Autor: Prof. Fernando Furquim de Almeida, “Catolicismo”) 




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A geometria a serviço do arquiteto medieval

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Folha do Caderno de Anotações de Villard de Honnecourt
Folha do Caderno de Anotações de Villard de Honnecourt



continuação de post anterior: Conhecimentos industriais e científicos da Antiguidade cuidadosamente aproveitados


Numerosas páginas do Caderno de Anotações de Villard de Honnecourt são dedicadas a exercícios de Geometria. Numa página, um desenho representa uma cabeça de homem cercada por uma retícula.

A cabeça esta dividida em 3 partes iguais que correspondem exatamente às proporções dadas por Vitrúvio:

“O comprimento do rosto é determinado da seguinte maneira: um terço é a distancia entre a parte de baixo do queixo e a parte inferior das narinas.

“O segundo terço da mesma dimensão, vai desde a parte inferior do nariz até uma linha que passa entre as duas sobrancelhas.

“O terceiro terço vai desde as sobrancelhas até à raiz dos cabelos e compreende a testa”.

Na mesma página, Villard executou os seguintes croquis: uma parede, uma torre com ameias, a cabeça de um cavalo, quatro cabeças humanas, um galgo, uma mão esquerda, aberta, um carneiro uma águia de asas abertas e dois avestruzes entrecruzados.



Villard utiliza as figuras geométricas de duas maneiras: em certos casos, ele sobrepõe um triângulo, assim como sobrepôs um quadrado ou um retângulo, ao desenho de uma cabeça de homem e de uma cabeça de cavalo ou sobrepõe um pentágono a uma cabeça de velho reproduzida em outro lugar enquadrada num triângulo.

Villard quis provar que se pode utilizar a mesma figura geométrica para quadricular duas cabeças diferentes – e para duas cabeças quase idênticas, duas figuras geométricas inteiramente, diferentes.

Supôs-se, durante muito tempo, que esse método oferecia ao aprendiz de desenho uma solução para o problema das proporções e da perspectiva.

Os historiadores demonstraram recentemente que a retícula geométrica era sobretudo utilizada na Idade Média

“para facilitar a projeção, em perspectiva, na pedra a esculpir, na parede a decorar ou na prancha de desenho do fabricante de vitrais, de um pequeno croqui do trabalho executado em plano sobre o pergaminho”. (Paul Frankl,The Gothic. Literary Sources of Interpretations through Eight Centuries, Princeton, Nova Jersey, 1960, p, 44.).

Em outros casos, Villard utilizou as figuras e os traçados geométricos para reproduzir facilmente um desenho numa determinada escala.

Eis o seu comentário: “Começa aqui o método do traço para desenhar a figura, tal como a arte da geometria o ensina para trabalhar facilmente”.

Comentando os desenhos que representam quatro pedreiros cujos corpos formam uma cruz, três peixes com uma só cabeça com capacete, uma figura mostrando quatro homens em elevação isométrica e a cabeça de um javali, Villard escreveu:

“Nestas quatro folhas estão as figuras da arte da geometria; mas aquele que quer saber para que poderá servir cada uma delas deve prestar atenção a conhecê-las”.

Villard previu as dificuldades que seriam criadas pela interpretação correta de seus traçados. Por duas vezes, em quatro folhas consagradas aos diagramas e quadricula- dos, emprega a palavra geometria. E repete a palavra numa outra folha:

“Todas estas figuras são traçados de geometria”.

Essa folha e as duas seguintes são consagradas a esquemas geométricos destinados à utilização pelos canteiros, topógrafos e carpinteiros nos locais de obras. Na fila do alto, lê-se da esquerda para a direita:

“Como calcular o diâmetro de uma coluna que não se vê inteiramente

“Assim se encontra o ponto no meio de um campo descrito ao compasso

“Por este meio se talha o modelo de um grande arco em três pés de terra”.

A ciência da Geometria. The British Library.
A ciência da Geometria. The British Library.
Na terceira fila:

“Por este meio se faz uma ponte de madeira num curso de água de vinte pés de comprimento

“Por este meio se traça um claustro com suas galerias e seu pátio

“Por este meio se toma a largura de um curso de água sem cruzá-la

“Por este meio se toma a largura de uma janela que está distanciada”.

Na quarta fila, sempre da esquerda para a direita, lê-se:

“Por este meio se assentam os quatro cantos de um claustro sem fio de prumo nem linha

“Por este meio se divide uma pedra de maneira tal que as duas metades sejam quadradas”.

Dois desenhos dessa folha apresentam um interesse particular; referimo-nos aos dois quadriculados da terceira e quarta filas.

Dão-nos a conhecer o método empregado na época para construir um alçado a partir de um plano, servindo-se de quadrados cada vez menores, encaixados uns nos outros.

Esse método constitui, talvez, um dos segredos do ofício dos pedreiros e canteiros medievais.

Abadia de Cluny: triunfo da geometria divina na arquitetura:



(Autor: Jean Gimpel, “A revolução Industrial da Idade Média”, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, 222 páginas.)

continua no próximo post: Os mestres medievais autores de inventos atribuídos a Leonardo da Vinci



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Os mestres medievais autores de inventos atribuídos a Leonardo da Vinci

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Detalhe do relógio astronômico na Praça da Cidade Velha, Praga.
Detalhe do relógio astronômico na Praça da Cidade Velha, Praga.



continuação de post anterior: A geometria a serviço do arquiteto medieval


Em 1459, os mestres-pedreiros de Estrasburgo, Viena e Salzburg, reunidos em Ratisbona para redigir os estatutos profissionais de suas lojas, decidiram:

“Nenhum operário, nenhum mestre, nenhum parlier, nenhum jornaleiro ensinará a quem não for do nosso ofício nem fez jamais trabalho de pedreiro como tirar a elevação [alçado] a partir do plano” (J. Gimpel, Les bâtisseurs de cathédrales, Ed. du Seuil, Paris, 1958, p. 123.).



O parlier – forma germanizada de parleur – é, de certo modo, um contramestre encarregado de “falar” [parler] aos companheiros como representante e intérprete do arquiteto nos grandes canteiros de obras.

Em 1486, o arquiteto alemão Mathias Roriczer, em sua obra intitulada Livro da Construção Exata de Pináculos, explicou abertamente esse método, com o auxílio de desenhos que recordam os que Villard executara 250 anos antes, sem os considerar um segredo.



O princípio da duplicação dos quadrados já se encontra no Tratado de Vitrúvio. Tanto Villard como Magister II conheciam certamente esse princípio.

Vitrúvio diz-nos tê-lo descoberto ele mesmo num diálogo de Platão: o Menon. “Platão demonstrou destarte a duplicação, por meio de linhas desenhadas” (Vitrúvio, I, Introdução).

Se o Carnet de Villard de Honnecourt nos faz pensar nos Cadernos de Leonardo da Vinci, isso não ocorre por mero acaso e a aproximação nada tem de fortuita.

Separados um do outro por dois séculos e meio, Villard, homem da Idade Média, e Vinci, homem da Renascença, tinham recebido praticamente a mesma formação e a mesma cultura: a das artes mecânicas.

Ao redigirem apontamentos de trabalho, resultados de suas pesquisas pessoais, eles obravam em conformidade com os costumes de seu tempo.
Detalhe das engrenagens do relógio astronômico da catedral de Estrasburgo.
Detalhe das engrenagens do relógio astronômico
da catedral de Estrasburgo.
Conhece-se a existência de mais de 150 manuscritos técnicos que datam do final do século XIV e começo do século XVI.

Da Vinci utilizou os tratados de seus antecessores e de seus contemporâneos, mas é admissível que ignorasse Villard e sua obra.

Foi recentemente provado que numerosas invenções atribuídas a Da Vinci já existiam nos escritos de engenheiros como Konrad Kyeser, nascido em 1366, Robert Valturio, nascido em 1413, e Francesco di Giorgio, nascido em 1439, escritos esses que Da Vinci conhecia todos. Anotou de seu próprio punho um texto de Giorgio.

Como Villard, ele também leu Vitrúvio, cujas obras figuravam entre os volumes de sua biblioteca. Se Villard parece ter vivido de pleno acordo com os costumes do seu meio social e o status de sua profissão, Da Vinci reagiu violentamente à falta de consideração com que os humanistas trataram o técnico que ele era.

Os iluminadores de manuscritos prestaram aos arquitetos medievais uma homenagem apropriada, ao representarem Deus, o Pai, como um arquiteto-engenheiro, medindo o universo com um compasso gigantesco.

Silenciosos mas pasmosos progressos: o Relógio Mecânico


A sociedade medieval entusiasmou-se pela mecanização e a pesquisa técnica, porque acreditava firmemente no progresso, um conceito ignorado no mundo antigo.

De um modo geral, os homens da Idade Média recusaram-se a respeitar as tradições que poderiam ter freado seu ímpeto criador, e Gilbert de Tournai escrevia:

“Jamais encontraremos a verdade se nos contentarmos com o que já está descoberto... Os que escrevem antes de nós não são senhores, mas guias. A verdade está aberta a todos, ela não foi ainda inteiramente possuída”. (Gimpel, Les bâtisseurs de cathédrales, p. 163)

E Bernard, mestre da escola episcopal de Chartres, de 1114 a 1119, acrescentava:

“Somos anões empoleirados nos ombros de gigantes.

“Por isso, vemos mais que eles e mais longe que eles, não porque a nossa vista seja mais aguda ou nossa estatura mais elevada, mas porque eles nos carregam no ar e nos elevam a toda a sua gigantesca altura”. (J. Le Goff, Les intellectuels au Moyen Age, ed. du Seuil, Paris, 1957, p. 17 )

Relógio astronômico da catedral de Estrasburgo.
Relógio astronômico da catedral de Estrasburgo.
A atitude de um Gilbert de Tournai e de um Bernard de Chartres levou os homens dessa época a encararem as invenções como coisa normal e a aceitarem a ideia de que haveria sempre no futuro novas invenções.

A ambição dos inventores não conhecia limites, sua imaginação ignorava fronteiras e, no entanto, de todas as máquinas extravagantes que conceberam e por vezes realizaram, uma simboliza a sua “pesquisa” científica: o relógio.

Se a teoria de Lewis Mumford sobre a origem beneditina dos relógios mecânicos é hoje controvertida, as opiniões desse autor sobre o papel da medida do tempo no desenvolvimento da civilização continuam válidas:

“A máquina-chave da idade industrial moderna não foi a máquina a vapor, foi o relógio. Em cada fase do seu desenvolvimento, o relógio é o fato saliente e o símbolo da máquina.

“Ainda hoje, nenhuma outra máquina é tão onipresente. Assim, no começo da técnica moderna, apareceu profeticamente a primeira máquina automática precisa que, após alguns séculos de esforços, iria pôr à prova o valor dessa técnica em cada ramo da atividade industrial.

“Permitindo a determinação de quantidades exatas de energia (portanto, a padronização), a ação automática e, finalmente, o seu próprio produto, a saber, um tempo exato, o relógio foi a primeira máquina da técnica moderna.

“Conservou a preeminência em todas as épocas. Possui uma perfeição a que as outras máquinas aspiram” (L. Mumford, Technique et civilisation, ed. du Seuil, Paris, 1950, pp. 23-24.).

(Autor: Jean Gimpel, “A revolução Industrial da Idade Média”, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, 222 páginas).




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Idade Média: uma novidade que empolga as novas gerações

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Anúncios de eventos como este espantam pessoas muito desatualizadas. O Brasil estava representado por combatentes.
Anúncios de eventos como este espantam pessoas muito desatualizadas.
O Brasil estava representado por combatentes.



Foi-se o tempo em que a máxima desqualificação de algo consistia em dizer que era “medieval”. Essa visualização mudou 180º.

Por isso, escritores e ativistas que ficaram esclerosados no antigo padrão protagonizam engraçados episódios.

Foi o que aconteceu com a jovem jornalista argentina Diana Fernández Irusta, de “La Nación”, galardoada com o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha.

Certo dia a jornalista, que estava tratando do joelho e andava com dificuldade, foi gentilmente auxiliada por uma nova vizinha do prédio em que mora. É Cecília, uma jovem professora de música e cantora, mãe de três filhos, que lhe deu apoio durante o tratamento. Diana ficou com uma alta imagem de Cecília.



Combate Medieval em Buenos Aires, mais de 30.000 pessoas assistiram.
Combate Medieval em Buenos Aires, mais de 30.000 pessoas assistiram.
Um dia o filho pequeno de Diana, que é fascinado por castelos e heróis, tanto insistiu em ir ver uma das feiras medievais que estão acontecendo em Buenos Aires, que a mãe decidiu levá-lo, imaginando encontrar uma encenação para crianças.


Sua surpresa foi total: nada de festinha, mas um evento que se destacava pelo nível cultural.

E enquanto ela girava pelas ruas da cidade medieval erigida para a ocasião, foi dar com Cecília, sua amável vizinha, ataviada com um belo vestido palaciano e ensinando às moças passos de uma dança medieval.

Cecilia lhe contou todos os livros que tinha lido. Ela sabia bem o que estava fazendo. Diana custou a acreditar, mas ainda não tinha se dado conta de tudo.

Os alto-falantes anunciaram o momento da batalha. Diana estava convencida de que assistiria a uma coreografia com espadas e escudos de plástico e levou seu filho.

Ela encontrou formidáveis cavaleiros medievais com armaduras de aço que poderiam figurar num museu. Armas e golpes eram reais e tremendos. Visavam derrubar o adversário. Todos eles tinham modernos acolchoados não visíveis sob a armadura, e as pancadas e o combate eram para valer.

Seu filho soltava as maiores exclamações e ensinava para a mãe a tecnologia e a arte dos golpes e a estratégia de combate.

Diana não entendia mais nada. Voltou a encontrar a simpática Cecilia, que logo percebeu seu desconcerto.

Diana arguiu, sem saber bem o que dizer: “Mas eles não ficam pelo menos com algum galo”? Sorridente e tranquila, Cecília respondeu: “Mas se praticassem futebol ou rúgbi poderiam também se fraturar, não é?”

Nessa hora, Diana já pensava que estava diante de uma heroína medieval em pleno século XXI.

E Cecília não fazia isso por fantasia. Ela lhe explicou tudo o que tinha lido e estudado, descreveu como seu coração se encheu de luz pelos relatos medievais, seu entusiasmo pela segurança dos conventos e o esplendor dos combates.

E não é só Cecília. Há associações culturais diversas que cultuam aquele passado povoado de santos, cavaleiros e damas, castelos e catedrais, sua música, pintura, culinária, arte e religião.

Cecilia lhe explicou o significado da história, da tradição: “Nós não somos só presente”. A grande coisa que a entusiasmava é a ideia da origem do homem: “Isso me leva até Deus, até a Criação, ao primeiro passo da humanidade”.

Ela parecia emergir da bruma medieval, ante os olhos da “antiquada modernidade” de Diana.

Os participantes do 1º Sulamericano de Combate Medieval ficaram emopolgados pelo sucesso
Os participantes do 1º Sulamericano de Combate Medieval ficaram emopolgados pelo sucesso
A entusiasta Cecília não teve dinheiro para viajar e ver os magníficos castelos que a jornalista Diana, sim, pôde visitar.

Mas isso não lhe importava: a Idade Média já existia em sua alma e, mais dia menos dia, ela iria viajar e conhecer seus magníficos restos materiais. Com alegria de criança, ela contava que acabava de tirar seu passaporte.

Diana voltou para sua casa se perguntando se não tinha perdido o bonde da história. E descreveu sua nova e perplexitante descoberta em sua coluna jornalística.



Mais de 30 mil pessoas assistiram ao Torneio Internacional de Combate Medieval, agosto 2015, em San Isidro, Grande Buenos Aires, onde o Brasil foi representado por uma seleção de combatentes.





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